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Um médico sob o nazismo e a educação para o trabalho

Guilherme Perez Cabral

29/06/2015 06h00

A qualificação para o trabalho, um dos objetivos de nossa educação, segundo a Constituição, não se reduz ao mero treinamento técnico para atender demandas imediatistas do mercado de trabalho. Nem a qualidade dessa qualificação pode ser medida, exclusivamente, pelo desempenho eficaz da tarefa especializada, sem a referência ao contexto social em que é desenvolvida.

A educação para o trabalho e o trabalho para o qual nos qualificamos deveria responder à pergunta moral sobre os valores que os envolvem, sobre os fins para os quais se prestam. Remetem à questão do compromisso que o profissional assume (ou deixa de assumir) com a sociedade.

Precisamos, sem dúvida, formar mais médicos, engenheiros, mecânicos, eletricistas, analistas de sistema, enfermeiros, contadores, numa lista sem fim de ocupações. Precisamos de especialistas em todas as áreas, desde construção de pontes até a cirurgia de mão. Eles são fundamentais. Todavia, para a construção da “sociedade livre, justa e solidária”, a que nos propomos -- também de acordo com a Constituição -- não basta o conhecimento técnico e especializado, fechado sobre si. É imprescindível a compreensão crítica sobre os usos que são feitos com esse conhecimento, os interesses aos quais ele serve. Afinal, eles não são neutros. Absolutamente.

A história mostra que desenvolvimento tecnológico e as grandes descobertas científicas não seguiram de par com o progresso moral. Serviram, aliás, para as maiores barbáries. Nosso século 20, o “mais assassino de que temos registro”, na lição do historiador Eric Hobsbawn, dá um sinal claro disso.

A relação entre a ciência e barbárie é muito bem retratada no documentário francês, dirigido por Emmanuel Roblin, “Ação T4: um médico sob o nazismo”. Trata do programa de extermínio de pacientes diagnosticados como doentes mentais, operado na Alemanha nazista. E narra a conivência e a participação do médico e neurocientista alemão Julius Hallervorden com o morticínio que se seguiu. Reconhecido estudioso de patologias cerebrais, no pós-guerra, seu envolvimento com o Terceiro Reich somente foi descoberto recentemente. Morreu coberto de honras.

Julius Hallervorden é um paradigma de tudo aquilo que não deveríamos ser, como profissional. É o sentido da deseducação. É verdade, ele descobriu doenças e suas curas. Mas não diagnosticou nem tratou sua própria enfermidade moral. Escolheu, dentre os pacientes internados em manicômios (muitos dos quais crianças), aqueles cujo cérebro dissecaria e estudaria, cientificamente, depois de mortos pelo regime.

No documentário, o médico é designado por “você”. De maneira muito incômoda, coloca quem o assiste na história, no papel do médico alemão. Provoca, assim, a reflexão sobre as piores consequências, diretas e indiretas, aceitas ou não, que podem acompanhar nossas escolhas e práticas profissionais. Consequências que, por vezes, preferimos ignorar, a forma fácil de nos desresponsabilizar.

Assim, o documentário nos impõe pensar em que medida, em nossa atuação profissional, não somos um pouco Julius Hallervorden. Em que medida não somos coniventes com o desrespeito aos direitos humanos que marca nosso cotidiano (e com o qual, infelizmente, nos habituamos), com as histórias de violência diariamente noticiadas, com a miséria com que nos deparamos a caminho do trabalho. Pior, em que medida não nos beneficiamos individualmente com tudo isso.

A educação deve pensar nisso, criticamente. Não pode perder de vista a justiça ou injustiça do trabalho para o qual, ainda, mais nos adestramos. Não pode abrir mão do debate sobre o compromisso que o profissional deve assumir com a melhoria do mundo no qual atua.

Dizia o Paulo Freire que quanto mais nos capacitamos como profissionais, utilizando o patrimônio cultural que nos fora legado, mais aumenta nossa responsabilidade. A qualificação para o trabalho não deveria se desligar nunca do preparo para o exercício da cidadania, aliás, outro objetivo constitucional da educação.