Lições do homem-bomba
Não compreendemos o homem-bomba.
Explodindo-se, ele nega uma forma de ver o mundo, um projeto de civilização que nos infundiram europeus e estadunidenses, moldando-nos e nos uniformizando como “ocidentais”, permitindo que conversemos e nos entendamos (em alguns pontos, pelo menos), apesar de tantas diferenças, particularidades e divergências.
Na confusão de ideias que conforma nosso olhar, acreditamos, ainda, no tal progresso da humanidade, por meio da razão, da ciência, da técnica. Repetimos, mesmo que superficialmente, sem ter lido, a filosofia iluminista, pensada e escrita há mais ou menos trezentos anos. Se indagados, afirmamos, como fez Kant, o ser humano como o valor absoluto, um fim em si mesmo. Nosso discurso não dispensa referências à dignidade da pessoa, aos direitos humanos, ao estado de direito, à democracia. Blablablá.
Quase sempre entra, também, algum deus nessa mistura, conferindo autoridade universal às verdades particulares defendidas. Ajudam a colorir e adocicar a “história interminável de ferro e de sangue, de fogo e de cinzas, um mar infinito de sofrimento e lágrimas”, narrada no Evangelho ateu de Saramago.
É verdade. No cenário das ideias fora do lugar, lembrava Roberto Schwarz, o teste da realidade nunca foi lá muito importante para nós. Definimo-nos a partir disso tudo, sem praticar nada disso. O tempo todo, vivenciamos o inverso.
Aceitamos a concretude da violência, da discriminação, do desrespeito ao outro. Defendemos a civilização, falamos de amor, solidariedade, mas o que predomina, na brutalidade sem fim da vida cotidiana, é o instinto de morte freudiano. Aquela tendência do ser humano à destruição, à agressão, à crueldade.
Temos, sempre, razões que justificam todas as desumanidades contra quem não estimamos. Nossa empatia é restrita e impaciente. Não nos sentimos responsáveis. Dormimos tranquilos, sem culpa.
De repente, vem o homem-bomba e se explode, explodindo junto pessoas que, aos nossos olhos, tinham (ou poderiam ter) algum valor. Ele não é ocidental, como nós. Seu deus é outro. Nossa razão não explica. Nossa linguagem não tem palavras que dê sentido. Nos aterrorizamos.
Ele é a negação da razão, do iluminismo, da humanidade, dos direitos humanos, do respeito mútuo, que pregamos, no plano das ideias, e nunca, nunca conseguimos realizar, na prática. Nem tentamos.
Ele contraria tudo aquilo que, no mundo das ideias, a nossa educação pretendia formar, o nosso direito pretendia regrar. Mas fracassa e torna a fracassar, de novo e de novo.
O homem-bomba escracha as nossas mentiras. Nos coloca, frente a frente, com certas verdades doídas. Tem muito a nos ensinar.
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.