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Cumprir a Constituição, enxugando-a: Um problemão para a educação

Guilherme Perez Cabral

30/05/2016 06h00Atualizada em 30/05/2016 10h19

O Governo Federal provisório entende que não dá para sustentar o nível de direitos que a Constituição estabelece. Só tem direito lá, disse um ministro. Deixa o país ingovernável.

É preciso “acalmar” o mercado, para a bolsa subir. Tem que cortar gastos e pagar a dívida pública. Tudo isso, sem mexer nos quinhões dos graúdos. Além do salário de gestor público, parlamentar e juiz 40 vezes maior do que o mínimo recebido por grande parte da população, tem a verba de gabinete, o auxílio isso e aquilo, a participação na corrupção, etc. Muitos interesses a preservar. Sobra sempre para os direitos sociais, já tão maltratados.

No campo da educação, continua incomodando a “vinculação” de receitas, prevista na Constituição. De acordo com o Art. 212, a União não pode aplicar, na área, menos do que 18% do que entra nos cofres públicos com impostos.

O novo ministro da Educação defendeu, ainda, a cobrança de mensalidades em cursos de pós-graduação em universidades públicas, embora a Constituição afirme, expressamente, a gratuidade do ensino público.

Como professor de Direito Constitucional, o presidente (não eleito democraticamente) não quer descumprir a Constituição. O jeito, então, é “enxugá-la” – expressão utilizada, em 2006, pelo deputado federal Michel Temer. Reduz direitos dos outros até onde pode e cumpre o que restar.

O texto constitucional disciplina a possibilidade de sua própria alteração, por meio de Emendas. Devem ser aprovadas na Câmara e no Senado, em dois turnos, com os votos de, no mínimo, três quintos dos membros. Bingo! Se mantiver o apoio da turma que afastou a presidente, para colocá-lo lá, o Governo pode escrever um texto novo, pequenininho.

Não se discute: o Estado provedor de tudo mostrou-se insustentável. Agora, a acreditar que a solução é reduzi-lo ao mínimo, delegando ao empresariado a provisão de vida digna ao cidadão, eu prefiro mentiras como Papai Noel. Empresário produz para ter lucro, não para atender necessidades básicas do povo. E não há nada de ilegal nisso. A livre iniciativa é um princípio constitucional.

Acontece que, sob a perspectiva egoísta do lucro, direitos dos outros são custos. Fica mais barato produzir, sem respeitá-los. Na “Sociedade do Espetáculo”, Debord lembra que só sob o “disfarce” de consumidor o trabalhador pobre é “lavado do absoluto desprezo” do patrão. Só quando pode pagar pelo produto que ele mesmo produziu é tratado com algum respeito. Uma amabilidade forçada.

Dane-se o mundo de gente que, por não dispor do mínimo para comprar a própria sobrevivência, perde o status de “cidadão-consumidor”. Não pode pagar para ter assegurado o direito à educação? Perdeu, então. Fique sem estudar.

Enfim, acertar os gastos públicos é fundamental. Providências para acalmar o mercado são bem-vindas. Contudo, deixar a conta toda para o pobre, não é definitivamente uma medida justa.

A Constituição traz consigo um projeto de país cuja concretização exige muita responsabilidade, por parte de todos. Trata-se de um empreendimento difícil, arriscado e falível, diz Habermas, com razão.

O que se espera de um governante, mais do que uso correto das mesóclises, é a compreensão de que, nesse projeto, temos de proteger o ser humano da anarquia desumana do capital. Espera-se a compreensão clara de que, atrás dos números e cifrões, tem gente.