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Valeu, Vicente

Guilherme Perez Cabral

11/07/2016 09h33

Domingo passado, o Vicente, vizinho lá da praia, morreu. Na verdade, não o via há tempos. Não fui mais à praia. A casa do lado nunca foi minha.

A facilidade da comunicação, nesse mundo em que se comunicar se torna cada vez mais difícil, permite deixá-la para depois e nos afasta.

Eu gostava muito do Vicente e, não duvido, ele tinha muito carinho por mim. Estava chateado comigo, eu sei. O Vicente, que só teve filho, tinha filhas de coração. Bronco e ciumento, disse que me capava se decepcionasse uma delas. Decepcionei e ele não me capou.

Na última vez que o vi, foi bem rápido, só deu tempo de cumprimentar e perguntar como vai a vida. Só o abraço enrijecido de quem não gosta dessas coisas de demonstrar sentimento. O importante, para mim, é que houve o sorriso incontido, irreprimível por mais que tentemos, quando vemos alguém que gostamos.

Não tínhamos nada a ver um com o outro, senão a coincidência da casa na praia, que, como disse, no meu caso, nunca foi minha e para a qual eu nunca mais fui. Mas havia empatia.

Na divisão estúpida que vivemos hoje, Vicente seria direita e eu esquerda. Nunca conversamos sobre política ou filosofia. Certamente, ele não se interessava pelos meus textos. Não sei detalhes de suas visões de mundo. Falávamos dos assuntos falados, descompromissadamente, nos momentos de lazer. Respeitou-se a distância de segurança (a menos de um metro, poucos seres humanos se suportam).

Com sotaque paulistano, todas as palavras da língua portuguesa eram, para ele, oxítonas. Sílabas tônicas prolongadas até onde pudesse.

Admirava – e dizia isso – meu empenho nos estudos.

Não fui ao seu enterro. Tenho desculpas, mas nenhuma me convenceu.

Na morte, a humanidade consegue viver, por um instante, uma interessante solidariedade. As diferenças, subitamente, se diluem. Ressaltamos qualidades, que jamais havíamos sublinhado, valorizando o que havia de bom. Ignoramos o que, até ontem, incomodava demais. O medo intransponível desse desconhecido, que nenhuma religião conseguiu amansar, une um pouco quem fica, apesar de tudo.

A morte realiza ideais que a educação busca concretizar sem êxito: a aceitação, sem ressalvas, de que nunca fomos nem seremos iguais; o respeito ao outro, na plenitude de sua diferença.

A amizade com o Vicente me mostra que, em alguma medida, isso é, sim, possível em vida. Que a humanidade não está totalmente perdida. Que é possível (até que ponto não sei) conversar, sem precisar despejar todo nosso rancor e agressividade no outro.

Mas não havia só esse respeito que devemos ao outro, gostando dele ou não. Havia também o afeto que, esclarece Freud (tirando um peso de nossas costas), não precisamos dedicar igualmente a todos, sem exceção. Nosso sentimento de “amor” é algo precioso demais para ser despendido irresponsavelmente. Ele impõe obrigações e sacrifícios que nos dispomos a cumprir.

Seria absurdamente mentiroso, e injusto com o Vicente, se dissesse que o carinho que tinha por ele – a meu sentir, recíproco –, se estende à humanidade inteira.