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As escolas livres da "escola livre"

Que Mário?/UOL
Imagem: Que Mário?/UOL
Guilherme Perez Cabral

03/04/2017 04h00

O Supremo Tribunal Federal, em decisão liminar do Ministro Luís Roberto Barroso, suspendeu a Lei de Alagoas nº 7.800/2016, que havia instituído, no Estado, o programa “Escola Livre”.

A versão alagoana da “Escola sem Partido” afirma, entre seus princípios, a neutralidade política e ideológica do Estado, bem como o direito dos pais a que seus filhos recebam a educação moral livre de doutrinação política, religiosa ou ideológica --“doutrinação” que fica, dessa forma, vedada ao professor.

Que o professor, ao expor determinada matéria, deve apresentar as mais diversas visões sobre o assunto, isso é inquestionável. Não precisava de uma lei nova. Diz Barroso, na sua decisão, que quanto maior o contato do aluno com diferentes visões de mundo, mais amplo tende a ser o seu universo de ideias e de possibilidades. Ele aprende no ambiente da pluralidade e, assim, desenvolve suas potencialidades, respeitando as diferenças.

Acontece que, ao fazer isso, o professor nunca é neutro. Não há neutralidade. O Estado brasileiro não é neutro. Ele toma partido o tempo todo: quando falamos em direito à educação, em democracia, em liberdade, estamos falando de opções político-ideológicas. Há outras.

A escola é o espaço de preparação para o ingresso na vida social. Para isso, tem de cumprir a Constituição, tomando os seus partidos. Tem de ensinar os valores da democracia, da liberdade, do pluralismo, do respeito à dignidade da pessoa. Não pode admitir a violência, o desrespeito ao outro, etc.

Eis a tarefa extremamente complexa da escola (e dos professores): ensinar no ambiente da pluralidade, reconhecendo que não há neutralidade.

O que não podemos aceitar, por outro lado, é uma criança forçada a seguir uma visão de mundo, como o único caminho certo. Isso, sim, é doutrinação. E isso ninguém pode fazer: nem a escola, nem a família.

O fato de os pais seguirem uma seita, religião ou ideologia específica não lhes dá o direito de impô-la aos filhos, excluindo-os das aulas e debates na escola sobre religião, ciência, arte e política. Da mesma maneira, o fato de os pais serem racistas, misóginos ou homofóbicos não lhes dá o direito de fechar os olhos dos filhos a sua pobreza moral.

Com a lei alagoana, corremos o risco de chamar de “doutrinação ideológica” o que a escola faz (e pode fazer), num ambiente plural, tomado de partidos, para assegurar o respeito aos valores da Constituição e, assim, evitar a “doutrinação ideológica”. O discurso de neutralidade acaba servindo, nesse cenário, para esconder compromissos, interesses e ideologias doutrinadoras.

Na liminar do STF, Barroso afirma, com razão, a inadequação da lei para alcançar sua suposta finalidade de promoção de educação sem doutrinação de qualquer ordem. Pode, complementa ele, “se prestar à finalidade inversa: a imposição ideológica e a perseguição dos que dela divergem”.

Que bom que foi suspensa. Mas que pena que a ideia de educação “neutra” ainda tenha entusiastas. Que pena que haja leis assim. Que pena que precisemos de decisão judicial para suspendê-las.