A onipotência do sistema
“2001 – Uma odisseia no espaço” foi um dos filmes mais incríveis a que assisti e revi inúmeras vezes. Entre tantas passagens carregadas de simbolismo, a vida prática do futuro era fascinante. Muitas das novidades retratadas no roteiro de Arthur Clarke e Stanley Kubrick tornaram-se realidade no presente.
Por sinal, a boa ficção científica é pródiga em prévias. Além da literatura, muitas vezes transformada em obra-prima no cinema, até “Os Jetsons”, no mundo da animação, nos deram exemplos curiosos do que estaria por vir. Passado algum tempo, muitas daquelas esquisitices ganharam vida e forma no nosso dia a dia. Algumas para o bem, outras para o mal.
A tecnologia a serviço do conforto e da praticidade é sempre bem-vinda. Deveria ser acompanhada de respeito e transparência nas relações de consumo, de trabalho, de convivência.
Sem limites
Chegamos a 2014 sob a tutela do sistema. Nada se compara à sua grandiosidade. O sistema impera sobre tudo e todos e é invocado o tempo todo, principalmente nas áreas de telecomunicações e setor financeiro.
Penso que uma função em alta é a de operador de telemarketing, não para nos oferecer serviços ou produtos, como cartões de crédito, por exemplo, mas para nos esclarecer sobre a soberania do sistema.
O sistema já passou da fase da oferta. Agora, ele decide que vai mudar o seu cartão, envia outro pelo correio e ainda manda um recadinho pelo celular: “O seu cartão de crédito teve um upgrade”. Pois é, o meu ganhou cilindradas, como motor de carro e, é claro, com anuidade acompanhando a evolução.
A cartilha do telemarketing também evoluiu. Ninguém mais pede desculpas em nome da instituição financeira pelo envio de um cartão de crédito não solicitado (o meu tem validade até dezembro e estamos só em janeiro!). Educadamente, do outro lado da linha, a pessoa repete sempre o mesmo: “Entendo a sua posição, mas não posso parar o sistema”.
Ah, o sistema! Mas ele tem lá o seu lado bom. Graças à sua engenhosidade sem limites, podemos nos interessar pelo idioma inglês, ou aperfeiçoar o que já sabemos, entendendo melhor o que significa um “upgrade”. Afinal, o brasileiro tem uma dificuldade imensa de aprender inglês e, por isso, deixa de aproveitar oportunidades, como os intercâmbios culturais.
Outra coisa boa que se aprende com a onipotência do sistema é o exercício da paciência. Sim, porque até chegar à atendente pessoa física, que fala o seu idioma, lhe dá um número de protocolo e repete a famosa frase do “entendo a sua posição”, há um caminho de espera e muita atenção. Interessante é que o tempo utilizado nessa operação não é descontado na tarifa que a clientela paga ao sistema. Ao contrário, a ligação é paga. Quanto ao seu precioso tempo, é melhor esquecer. Para o sistema, o seu tempo não vale nada e essa é uma lição de desapego que também aprendemos nessa relação.
Moral estranha
O sistema muda o status do meu cartão, porque pago as contas em dia. Mas como também altera o valor da anuidade para mais, entendo que quem tudo paga, mais deverá pagar. Será que em sua onipotência o sistema eliminou o mérito da pontualidade?
Estranha moral essa na qual devemos pagar mais por simplesmente honrarmos nossas dívidas. Eu e muitas outras pessoas como eu não precisamos de status de mentirinha, nem de qualquer outro subterfúgio para ter um cartão de crédito. Por sua vez, os gênios do marketing a serviço dos departamentos de cartão de crédito de nossos bancos deveriam buscar reais inovações para aumentar ainda mais suas receitas.
Também não precisamos ser subestimados a ponto de termos de engolir que tudo é gerado e gerido pelo sistema. Com essa desculpa pelo abuso de poder, terei que aguardar um mês para cancelar um cartão que não pedi e solicitar outro, do jeito que eu quero. Porque o atual, coitado, teve aposentadoria compulsória por ordem do sistema.
Respeito pelos clientes seria bom, oportuno e correto para controlar a fome de onipotência do sistema.
* Homenagem a Engel Paschoal (7/11/1945 a 31/3/2010), jornalista e escritor, criador desta coluna.
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