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Para onde vai nossa memória

Artistas pintam grafites em paredes dos Arcos do Jânio, patrimônio histórico de São Paulo - Moacyr Lopes Junior/Folhapress
Artistas pintam grafites em paredes dos Arcos do Jânio, patrimônio histórico de São Paulo Imagem: Moacyr Lopes Junior/Folhapress
Lucila Cano

06/02/2015 08h00

Poetas têm um poder de síntese de fazer inveja. Poucos versos dizem tudo que muitas palavras nem sempre conseguem. Do poema “O guardador de rebanhos”, de Alberto Caeiro, um dos heterônimos de Fernando Pessoa, os versos que comparam o Tejo ao rio da aldeia ficaram na memória: 

“O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia, 

Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia

Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia”.

Li muitas análises a respeito da técnica e das intenções do poeta, mas prefiro ficar com o sentimento que a alternância de palavras me provoca: o amor pelas origens, pelo lugar em que a gente nasce e vive.

Nasci e vivo numa cidade feia, cinzenta, maltratada e desrespeitada pela maioria dos que vivem aqui. Mas é a minha cidade.

Quem, como eu, gosta dela, não cansa de se perguntar: “Para onde vai nossa memória?”.

Cidade colorida

São Paulo, a maior cidade do país em população e em problemas, disputa com a cidade do Rio de Janeiro o primeiro lugar em concentração de favelas. Como no Rio, as moradias irregulares não estão apenas na periferia. Elas se multiplicam em cortiços nas áreas urbanas, em bairros centrais como o Cambuci, a Aclimação, a Vila Mariana. 

Cerca de 11% da população da região metropolitana moram em habitações precárias, que carecem de tudo, inclusive tinta nas paredes. É de se compreender, a cidade não foi preparada para abrigar a população atual.

No portal da Secretaria de Habitação, a Prefeitura informa o número de unidades habitacionais por fase do empreendimento (dados de 02/fevereiro/2015): 17.167 obras estão em andamento. O portal também exibe fotos de edificações recém-construídas. Falta cor, falta alegria nas fachadas dos prédios que acolherão sonhos de uma moradia digna.

No portal da Secretaria Municipal de Educação, constato que a rede municipal de ensino da cidade de São Paulo é a maior do país: “... a rede tem 1.478 escolas espalhadas por todos os cantos da cidade administradas diretamente pela Secretaria Municipal de Educação. Acrescentam-se a elas as 362 creches indiretas, operadas por entidades conveniadas, e os 1.625 convênios assinados com creches particulares e entidades alfabetizadoras”.

Escolas e creches têm paredes, muros, até jardins. Um mutirão de grafiteiros sem dúvida daria muito mais vida aos estabelecimentos de ensino da cidade cinza.

Os Arcos Calabreses

No livro “Da Taipa ao Concreto, Crônicas e Ensaios sobre a Memória da Arquitetura e do Urbanismo” (Três Estrelas, 2013), o arquiteto Carlos Alberto Cerqueira Lemos, professor da FAU-USP, reuniu 53 artigos escritos entre 1972 e 2009.

O professor Lemos é arquiteto consagrado, trabalhou com Oscar Niemeyer e participou diretamente dos projetos do Parque do Ibirapuera e do Edifício Copan, dois símbolos da cidade de São Paulo.

No artigo “Nosso passado ainda terá futuro?” ele relata que o ex-presidente Jânio Quadros, à época prefeito de São Paulo, destruiu “um testemunho importante da produção paulistana que foi o conjunto de sobrados da Rua Jandaia, sem que ninguém do povo reclamasse como roubado do seu patrimônio. Um pouco de São Paulo desapareceu ali sem qualquer justificativa”.

Os sobrados foram demolidos em 1987, revelando os “Arcos Calabreses” que estavam atrás deles e que foram construídos entre 1911 e 1913 por operários vindos da Calábria, Itália.

Os sobrados se foram e ficaram os arcos, que popularmente passaram a ser chamados de “Arcos do Jânio”.

No afã de colorir a cidade, o atual prefeito permitiu que o seu projeto de grafite pelos muros da Av. 23 de Maio se estendesse aos arcos, patrimônio histórico de São Paulo. A prefeitura informou que a pintura é reversível e o prefeito, então, disse que “os conservadores vão reclamar”.

Nada contra o grafite, mas com tanta coisa para melhorar na cidade, por que desfigurar o patrimônio? Por que não conservar o pouco da história que ainda nos resta?

* Homenagem a Engel Paschoal (7/11/1945 a 31/3/2010), jornalista e escritor, criador desta coluna.