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Escravos de nós mesmos

Lucila Cano

15/05/2015 06h00

Há 127 anos, o feito de uma princesa nos livrou da vergonha dos grilhões que apartavam negros e brancos no país. Assinada a Lei Áurea, e assim aprendemos nos primeiros anos de escola, acreditamos ter sido salvos do vexame de encimar a lista dos últimos redutos escravagistas do mundo. A monarquia de Dom Pedro 2º estava perto do fim e a partir de 13 de maio de 1888, não havia mais escravidão no Brasil.

Não foi bem assim. Não é bem assim. No Brasil e no mundo, a escravidão se disfarça, mas persiste manchando a história da humanidade desde que nos conhecemos por gente.

História que se repete

Escravos nem sempre foram negros, nem oriundos da África. Na Antiguidade, os romanos faziam escravos por onde passavam, como fizeram com os gregos, brancos, loiros e de olhos azuis. Antes deles, outros povos subjugaram seus inimigos a cada terra conquistada.

Nossos índios seguiam a mesma cartilha. Nas disputas, a tribo vencedora fazia da outra um séquito de escravos e, fossem antropófagos os dominadores, o destino dos serviçais estava selado.

Os negros africanos trazidos para o Brasil por mercadores europeus foram a esses vendidos por outros africanos, provavelmente aqueles que se saíram vitoriosos em embates das tribos locais.

Por aqui, o negro liberto pela Princesa Isabel tornou-se escravo do acaso. Não havia casa, não havia trabalho, não havia uma sociedade consciente, nem solidária. Poucos foram os que encontraram abrigo e oportunidade para recomeçar suas vidas com dignidade.

A urgência das lavouras, principalmente a do café na região Sudeste, substituiu o negro escravo pelo imigrante europeu (e depois o asiático), mediante pagamento como trabalhador rural.

Desse modo se deu início a uma nova fase da miscigenação brasileira e a um novo tipo de trabalho escravo. Não havia correntes. Elas foram substituídas por preconceito, acomodações precárias, dependência financeira dos patrões e carga desumana de trabalho. O homem remunerado pelo trabalho estava sempre em dívida, pois o que recebia nunca era suficiente para o alimento, o vestuário e, muitas vezes, a moradia que tinha que pagar ao próprio patrão.

Esse tipo de escravidão ainda existe no Brasil do século 21. Em áreas de exploração agrícola e de minérios, em regiões florestais, para onde migram trabalhadores de todos os cantos, o trabalho forçado, aguilhoando indivíduos com essa fórmula de dívida perene, atinge outros membros da família, principalmente crianças.

Nas cidades, o trabalho escravo vitima imigrantes dos países vizinhos e não só eles. As oficinas de costura e outras bibocas, que primeiro asilavam bolivianos em condições subumanas, agora também recebem haitianos, chineses e coreanos. Ironicamente, muitas vezes os patrões são patrícios desses escravos urbanos.

Um novo tipo de escravidão

O tráfico de pessoas caracteriza outro tipo de escravidão. Mulheres jovens são levadas para a prostituição e trabalhos forçados em países estrangeiros. Na maioria, elas têm pouca instrução e são atraídas por promessas de trabalho e bons ganhos.

Assim como elas, refugiados representam hoje um novo tipo de escravos. Oprimidos pelas guerras e por perseguições religiosas, eles se sujeitam à fome, ao frio, às epidemias, aos riscos de um transporte precário e sacrificam suas últimas economias para chegar aonde possam viver livres e em paz.

No caso daqueles que chegam à Europa aos milhares, nada parece detê-los na busca desse objetivo maior. Muitos têm qualificação profissional e educação formal de nível. Poderiam contribuir para a riqueza de pátrias adotivas que lhes permitissem retomar suas vidas.

No entanto, o mundo reage assustado aos estrangeiros. Alguns políticos falam em cotas por país, enquanto outros sugerem afundar os barcos que transportam refugiados e outros, ainda, estão dispostos a pagar para nem ouvir falar dessa história.

Nenhuma das alternativas soa suficientemente boa, razoável e humana.

* Homenagem a Engel Paschoal (7/11/1945 a 31/3/2010), jornalista e escritor, criador desta coluna.