Trump e o alerta para escutar a sociedade

Maria Alice Setubal

Maria Alice Setubal

  • Eric Thayer/The New York Times

    9.nov.2016 - O presidente eleito Donald Trump discursa logo após vencer as eleições

    9.nov.2016 - O presidente eleito Donald Trump discursa logo após vencer as eleições

Após a divulgação dos resultados das eleições americanas, em que Donald Trump foi o vencedor, as primeiras reações foram de espanto, incredulidade e tristeza. Mais uma vez, vemos uma onda conservadora que se espalha por diferentes regiões do planeta.

Sem dúvida, na gestão de Trump as questões de gênero, étnico-raciais, os temas sociais (especialmente os relativos à previdência e saúde) e as questões tributárias e econômicas sofrerão grandes retrocessos, se confirmadas as promessas da campanha do candidato republicano. Mas afinal, por que o mundo foi pego de surpresa com os resultados destas eleições?

Alguns analistas já alertam para a surdez que abateu a todos (incluindo a mídia, institutos de pesquisa e o próprio partido Democrata). Em meio à torcida contra Trump, estes grupos ignoraram os anseios do eleitorado que votou no candidato, acreditando que ele não venceria.

Um misto de arrogância e desqualificação para com aqueles que pensam e agem de forma mais conservadora tomou a mídia e a maioria dos acadêmicos e formadores de opinião, assim como os democratas e as esquerdas de modo geral. Não houve preocupação em entender as causas de um descontentamento que deu espaço para esse enorme contingente de pessoas e grupos que sentiam-se marginalizados econômica e socialmente, e acabaram por apoiar o empresário que prometia devolver a América para os americanos.

Análises do dia seguinte ajudam a entender o comportamento do eleitorado. Vários estudos e pesquisas indicam que o crescimento das desigualdades no país se relaciona com a sensação de uma classe média baixa e branca de ficar para trás ao perder os postos da indústria. Já a população rural --e majoritariamente branca-- de pequenas cidades americanas, sobretudo no centro-oeste, mostrou-se contrária às ações afirmativas aos negros e à abertura e aumento constante da imigração.

Acrescenta-se ainda à insatisfação dos americanos mais conservadores o avanço nas leis relativas a valores que questionam costumes e crenças arraigadas nessa população, tais como o aborto, o casamento gay, a liberação da maconha, dentre outros.

A sensação de invisibilidade dentre os mais conservadores gerava enorme ressentimento e rancor, e essa população viu nas promessas de Trump um caminho para sentir-se reconhecida e respeitada, ao contrário do que ocorria com Hillary, que os chamou de deploráveis.

Esse é um breve retrato de um momento complexo, que exige muito amadurecimento e sensibilidade não só para os americanos mas para todas as sociedades, pois ele traz maiores responsabilidades para o debate e para as intervenções das diferentes forças progressistas.

Dando um salto nessa análise para pensar o papel da educação no Brasil em um contexto mais conservador, podemos dizer que temos um longo caminho a percorrer. Penso que, antes de mais nada, precisamos aprofundar nossa escuta. Recentemente, ela se ampliou para ouvir jovens, negros, mulheres, gays e trans, mas pouco se abriu para escutar mais atentamente as diferentes crenças evangélicas, que aumentaram significativamente nos últimos anos – e adquiriram expressiva representação política, como é o caso da eleição de Crivella no Rio de Janeiro e da composição de grandes bancadas na Câmara de vereadores de São Paulo e de outras cidades.

Entender o que leva tantas pessoas a essa religião, o que está por trás desses grupos e quais seus anseios é parte integrante de um novo olhar necessário à sociedade. O aprofundamento da escuta deve nos levar a entender também as relações das periferias com ações e comportamentos que transitam entre o lícito e o ilícito e resultam em um maior número de famílias com algum de seus membros cumprindo penas ou medidas socioeducativas. Finalmente, merecem também atenção os territórios com maior influência do tráfico, e seus desdobramentos possíveis.

Atuar em projetos e programas de organizações da sociedade civil ou implementar políticas públicas que possam trazer resultados concretos ou impactos transformadores exige uma escuta atenta. Mais do que isso, devemos buscar a participação desses diferentes setores que compõem a sociedade e querem ser ouvidos e reconhecidos.

Ao escrever esse artigo, me veio à memória um pequeno exemplo que me parece significativo, e que ocorreu durante uma atividade com um grupo de jovens da Zona Leste que participavam de projetos da Fundação Tide Setubal. No ano passado, ao discutir a redução da maioridade penal, a maioria dos jovens tinha uma posição favorável à proposta, para espanto dos coordenadores do projeto.

Mas, ao invés de adotar uma postura de confronto ou de doutrinação, os coordenadores incentivaram o debate sobre as diferentes questões envolvendo a redução da maioridade penal. Ao final de uma longa conversa com uma mediação aberta e pedagógica, os jovens concluíram que, para serem coerentes com seus posicionamentos, deveriam ser a favor do veto à proposta de lei.

Acredito ser esse o papel da educação: aproximar-se das pessoas sem um julgamentos ou ideias pré-concebidas, mas buscando entender seu contexto e suas raízes. A partir desta compreensão, é possível desencadear uma discussão democrática que contribua para a construção de conhecimentos e argumentos que validem um posicionamento. E isso nem sempre coincide com nossos valores. Os adolescentes e jovens estão ávidos para entender e debater as questões do mundo contemporâneo. Por isso, a escola não pode se ausentar de seu papel de construir pontes entre o conhecimento e a sociedade atual, envolvendo alunos de todas as origens e crenças.

Maria Alice Setubal

Maria Alice Setubal, a Neca Setubal, é socióloga e educadora. Doutora em psicologia da educação, preside os conselhos do Cenpec e da Fundação Tide Setubal e pesquisa educação, desigualdades e territórios vulneráveis.

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