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Filosofia

Pós-kantianos - Fichte, Schelling e o Idealismo alemão

José Renato Salatiel, Especial para a Página 3 Pedagogia & Comunicação

A filosofia de Kant deixou, para seus sucessores, um problema: como conciliar os dualismos entre razão teórica (conhecimento) e razão prática (moral), entendimento e sensibilidade, coisa-em-si e fenômeno, sujeito e objeto? O pensamento pós-kantiano teve como objetivo tentar restabelecer uma unidade na filosofia, conciliando os antagonismos na obra do filósofo.

O pensamento pós-kantiano, que pode ser datado entre 1780 e 1850, e situado principalmente nas universidades de Iena e Berlim (Alemanha), ficou conhecido como idealismo alemão. Em comum, além do fato de trabalharem sobre a obra de Kant, esses filósofos tentaram construir um sistema ideal de pensamento que explicasse todas as coisas do mundo.

Os primeiros idealistas alemães eram, em sua essência, kantianos, e buscavam resolver impasses na filosofia kantiana. Mas Fichte, Schelling e Hegel, construíram filosofias originais. Este artigo apresenta, sucintamente, as ideias dos dois primeiros filósofos.



A liberdade infinita do Eu

O mais audacioso dos pós-kantianos foi Johann Gottliebe Fichte (1762-1814), que conciliou os dualismos kantianos em um princípio denominado Eu, exposto em sua principal obra, Doutrina da Ciência.

Em Kant, tínhamos um mundo subjetivo, depositário das formas a priori do conhecimento, e um mundo objetivo, a coisa-em-si, que só pode ser conhecido quando se torna fenômeno para o sujeito. Em Fichte, o mundo objetivo nasce do mundo subjetivo, como se a realidade fosse apenas um palco que o homem teria criado para agir.

O que é esse Eu que produz a si mesmo e a realidade? É pura liberdade, pura possibilidade. Ele é infinito e ilimitado. Por exemplo, posso ser o que imaginar ser, desde que não saia de meu mundo interior. Mas, para ser alguma coisa, preciso agir no mundo externo.

Ao agir, o Eu cria o não-Eu, que é a própria realidade. Ou seja, segundo Fichte, o mundo não existiria se não fosse colocado pela vontade do Eu, pela ação do sujeito. Ele faz isso para se definir, por meio de suas ações, e vencer os obstáculos da vida.

Um exemplo pode ajudar a entender melhor a ideia. Posso ter vários talentos, para desenho, música ou matemática. Mas, para desenvolver um destes talentos, preciso estudar, fazer uma faculdade ou exercitar muito estas habilidades. Ao fazer isso, me confronto com uma série de dificuldades (a falta de dinheiro, o fato de minha cidade não ter escolas especializadas, etc.). Porém, é somente superando tais empecilhos que defino esse Eu, dizendo, por exemplo, "Eu sou músico" ou "Eu sou filósofo".

Em Fichte a realidade é criada, na interioridade do sujeito, para que o Eu atinja todo seu potencial e desenvolva suas aspirações.



Preguiça é o pior dos males

A lição da filosofia moral de Fichte é de que precisamos agir no mundo para afirmar nossa liberdade. Existir, para ele, é confrontar os obstáculos da vida, pois assim posso predicar o Eu. O pior vício, segundo o filósofo alemão, é a preguiça, e todos os outros vícios decorrem deste. Preguiça é aquilo que bloqueia a ação e nega a realização da liberdade humana.

A Natureza é, por assim dizer, uma pedra diante do Espírito, que precisa ser superada pelo aprimoramento moral do homem. O Eu não é bom nem mau. Suas virtudes são decorrentes de sua ação no mundo, de seu agir. Por isso, a filosofia de Fichte é uma filosofia prática, uma filosofia do agir, pois somente agindo no mundo posso exercer minha liberdade. Afinal de contas, não é superando obstáculos que vencemos nossos limites e nos tornamos melhores?



Filosofia da Natureza

O ponto de partida da filosofia de Friedrich Wilhelm Joseph Von Schelling (1775-1854) é exatamente o ponto em que ele discorda de Fichte: ao condicionar o objeto ao sujeito, Fichte mantém uma concepção determinista da Natureza, isto é, a Natureza é meramente produto da razão humana. Schelling não concorda com essa ideia.

Para Schelling, existe uma organização na natureza, cujo princípio criador é exterior ao Eu mas que, no entanto, compartilha o mesmo Espírito. Como não existe a possibilidade de uma consciência fora do Eu, este Espírito é inconsciente. Segundo o filósofo, há um mesmo Espírito fora do homem e uma mesma Natureza dentro do homem, a diferença é que o homem é consciente disso, a Natureza, não.

A concepção de divindade em Schelling é panteísta, o que significa que Deus, para ele, está em todas as coisas. Deus se faz Natureza para existir (necessidade) e ascende do inconsciente na Natureza para o consciente no homem (liberdade) para que este possa se autoconhecer: Ele se vê na Natureza através do homem. Temos então:

Espírito (Deus):


  • Inconsciente na Natureza (necessidade)
  • Consciente no homem (liberdade)

    E quando sujeito e objeto, homem e Natureza, se tocam, se tornam uma Unidade? Na experiência estética, diz Schelling. Uma onda do mar ou um pôr-do-Sol são obras de arte, com seus matizes e formas únicas, expressões de diversidade, originalidade, liberdade e beleza. Também o homem pode produzir o belo em obras de arte, como uma pintura, uma música ou uma dança.

    É a mesma liberdade que se manifesta de formas diferentes: de forma real no mundo dos objetos, e de forma ideal no mundo da Arte.

    O gênio artista E é na experiência de contemplação de uma obra de arte ou da Natureza que o homem tem contato com Deus, que cria beleza de forma consciente no homem (obra de arte) e inconsciente na Natureza (diversidade); em que liberdade (criação artística) e necessidade (materialidade da obra e das coisas do mundo), o infinito e o finito, são unidos.

    Quando contemplamos um quadro de um grande mestre da pintura, não vemos um objeto, mas transcendemos o objeto na contemplação. O objeto da arte é finito em sua materialidade, sua objetividade, mas é infinito na abertura de suas interpretações. Por este motivo é um equívoco perguntar a um artista o que ele quis dizer com sua obra: ele não tem nada a explicar porque a arte é pura expressão de sentimento, de liberdade e poesia (é por isso que sempre que lemos um bom livro temos sensações e interpretações diversas a cada leitura).

    A percepção estética é uma via de acesso do Uno, ao contrário da dualidade sujeito-objeto que faz a ciência. Todo procedimento científico cinde sujeito (que conhece) e objeto (aquilo que é conhecido). Na Arte, o que foi separado é de novo reunido na contemplação do infinito (Deus) naquilo que é finito (a obra). Assim, Deus, em Schelling, não é alcançado pelo filósofo, mas pelo gênio artista.

    A Filosofia da Arte é um elemento original em Schelling, que é o primeiro autor, imbuído do espírito do Romantismo alemão, a colocar a experiência estética como faculdade primária do homem. Ele também é o primeiro filósofo moderno a questionar a visão da Natureza como relação de causalidade, entendendo-a, ao contrário, como essencialmente uma força criativa.

    Leituras A literatura sobre idealismo alemão é escassa nas livrarias brasileiras. Vale a pena uma visita aos sebos para procurar A Filosofia do Idealismo Alemão, de Nicolai Hartmann (Calouste Gulbenkian), a melhor introdução ao tema, e começar as leituras de Fichte e Schelling pelos textos da coleção "Os Pensadores", da Editora Abril Cultural.

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