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Linguagem naturalista - Aluísio Azevedo e Adolfo Caminha

Lílian Campos, Especial para a Página 3 Pedagogia & Comunicação

O Mulato (1881) e Bom Crioulo (1895), respectivamente, de Aluísio Azevedo e Adolfo Caminha, são obras consagradas da produção literária naturalista brasileira.

Propomos aqui breves observações no tocante à linguagem empregada em cada um desses romances, enfatizando que essas diferenças aplicam-se a cenários narrativos particulares e apontam para formas diferentes de expressão do naturalismo.

O enredo de O Mulato passa-se no Maranhão. Os personagens pertencem à classe burguesa e encontram-se, normalmente, em situações familiares. O protagonista, Raimundo, encarna a figura de um homem educado na Europa, culto, de elevada conduta moral, elegante na aparência e nas atitudes. O personagem feminino, Ana Rosa, representa a imagem da jovem educada para casar e servir com dignidade ao futuro marido.

Em Bom Crioulo, o espaço focalizado é o Rio de Janeiro, mais precisamente a região portuária. O contexto social é dado pelas atividades que os personagens exercem: são marinheiros de postos mais baixos, moram nas proximidades do cais e não dispõem de educação formal. Alguns são escravos fugidios - tal como o protagonista, Amaro; outros são de origem simples e vivem sem perspectivas - a exemplo de Aleixo. Seus quotidianos reforçam um submundo de agressão, promiscuidade e demência.
 

Aspectos da linguagem

Nos trechos a seguir mostramos alguns aspectos da linguagem pertinentes a esses dois cenários. O primeiro, (a), foi extraído de O Mulato (Editora L&PM, 1998, p. 261 - 4). Raimundo, depois de já ter-se descoberto filho de uma escrava, está sozinho e pondera sobre a recusa ao seu pedido de casamento feito a Ana Rosa. O segundo, (b), provém de Bom Crioulo (Editora Ática, 1998, Série Bom Livro, p. 94). Amaro também está só, enquanto pensa em Aleixo e nos motivos que teriam levado o amante a esquecê-lo.

Trata-se de um momento de extrema fragilidade emocional para esses personagens. Observemos:


(a) - Mulato! E eu que nunca pensara em semelhante coisa!... Podia lembrar-me de tudo, menos disto!...
E acusava-se de frouxo; de não ter reagido com espírito forte, e provado que Manuel estava em erro e que ele, Raimundo, não ligava a mínima importância a semelhante futilidade. Assistiam-lhe agora respostas magníficas, verdadeiros raios de lógica, com que fulminaria o adversário. E, argumentando com as réplicas que lhe faltaram então, reformava mentalmente todo o caso, dando a si próprio um novo papel, tão brilhante e enérgico quão fraco e passivo fora o primeiro.
(...)
Ia descalçar a primeira botina, quando espantou-se com a lembrança de Ana Rosa. Uma voz exigente bradava-lhe do coração: "E eu? E eu? E eu?... Esqueceste de mim, ingrato? Pois bem, não quero que vás, ouviste? Não irás! Sou eu quem to impedirá!"
E Raimundo, pasmo por não ter durante tanto tempo pensado em Ana Rosa, despiu-se com pressa e, como querendo fugir a esta nova ideia, atirou-se de bruços na cama, soluçando.

(b) Inquieto, sobreexcitado, nervoso, pôs-se a meditar. O grumete aparecia-lhe com uma feição nova, transfigurado pelos excessos do amor, degenerado, sem aquele arzinho bisonho que todos lhe admiravam, o rosto áspero, crivado de espinhas, magro, sem cor, sem sangue nos lábios...
(...) via-o nos braços da amante, da tal rapariga - ele novo, ela mocinha, na flor dos vinte anos - via-o rolar em espasmos luxuriosos, grudado à mulher, sobre uma cama fresca e alva - rolar e cair extenuado, crucificado, morto de fraqueza...
(...) Bom Crioulo desnorteava. Inconscientemente era arrastado para um mundo de ideias vagas que não o permitiam tomar uma solução pronta, definitiva. Só uma ideia conservava-se firme e clara em seu espírito: fugir, fugir quanto antes, não esperar mais nem um segundo, romper os diques de seu isolamento e amanhecer na rua, no meio da cidade, longe do hospital, 'desse hospital de merda!'

O modo como os personagens expressam seus sentimentos sugere um ritmo próprio à linguagem. Em (a) temos a expressão de um amor contido e das imposições que o personagem se faz para manter-se equilibrado emocionalmente frente àquilo que o perturba. Raimundo é formal, é coerente com sua personalidade e com o contexto social circundante.

Já em (b) temos a expressão de um amor extrapolado, obsessivo, mórbido até. Amaro teve seus instintos feridos, atacados pelo ciúme, pelo desejo desesperado de possuir Aleixo. Neste sentido, a linguagem perpassa o personagem, captando seus movimentos, sua ferocidade.

Expressões de um erotismo mundano (grifadas), também realçam esse universo promíscuo e perigoso do qual Bom Crioulo faz parte. Expressões como merda e ... que os pariu (p. 97), além de algumas gírias de época - como rolo (p. 101), bordejando (p. 97), revelam uma preocupação do autor em manter-se fiel ao linguajar do meio retratado em sua obra. (Considerando-se que o autor ocupou postos na Marinha, é possível inferir que dominava a linguagem dos marinheiros e conhecia seus costumes.)

Esses romances assumem, ainda que com enfoques distintos, dois elementos característicos ao naturalismo: a predileção pelo espaço urbano e pela linguagem transparente, com ênfase para Bom Crioulo, onde urbanidade e linguagem coloquial impregnam vivamente o enredo.

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