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Narrativa literária - Diferenças entre literatura e texto jornalístico

Jorge Viana de Moraes, Especial para a Página 3 Pedagogia & Comunicação

Leia o texto abaixo:

Espírito natalino

Moacyr Scliar

"Homem disfarçado de Papai Noel tenta matar publicitária em SP."
(Caderno Cotidiano - Folha de S. Paulo - 18/12/01)

Primeira coisa que ele fez, ao chegar em casa, foi tirar a roupa de Papai Noel: estava muito quente, suava em bicas. Também queixou-se de dor na coluna. Isso é por causa do saco que você carrega, observou a mulher. De fato pesava bastante, o tal saco. A razão ficou óbvia quando ele esvaziou o conteúdo sobre a mesa: revólveres, granadas, submetralhadoras, vários pentes de munição. Já não dá para sair de casa sem um arsenal, resmungou. O seu mau humor era tão óbvio que ela tentou amenizá-lo, puxando conversa. Como foi o seu dia, perguntou.

- Um desastre foi a azeda resposta. - Mais uma vez errei a pontaria. Já é a segunda vez nesta semana.

- Isto é o cansaço - disse ela.

- Você precisa de um repouso. Amanhã você vai ficar em casa, não vai?

- De que jeito? Tenho trabalho.

- Amanhã? No dia de Natal?

- O que é que você quer? É a minha última chance de usar a fantasia de Papai Noel Tenho de aproveitar.

Suspirou:

- Vida de pistoleiro de aluguel é assim mesmo, mulher. Natal, Ano Novo, essas coisas para nós não existem. Primeiro a obrigação. Depois a celebração.

Ela ficou pensando um instante. - Neste caso - disse -, vamos antecipar a nossa festinha de Natal. Vou lhe dar o seu presente.

Abriu um armário e de lá tirou um caprichado embrulho. Surpreso, o homem o abriu com mãos trêmulas. E aí o seu rosto se iluminou:

- Um colete à prova de balas! Exatamente o que eu queria! Como é que você adivinhou?

- Ora - disse ela, modesta, afinal de contas eu conheço você há um bocado de tempo.

Ele examinava o colete, maravilhado. E aí notou que ele era todo enfeitado com minúsculos desenhos.

- O que é isto? perguntou intrigado.

Ela explicou: eram pequenas árvores de Natal e desenhos do Papai Noel, trabalho de uma habilidosa bordadeira nordestina:

- Para você lembrar de mim quando estiver trabalhando.

Ele começou a chorar baixinho. Em silêncio, ela o abraçou. Compreendia perfeitamente o que se passava com ele. Ninguém é imune ao espírito natalino.

(Texto extraído do jornal Folha de S. Paulo, São Paulo, edição de 24/12/2001, publicado com o título "Espírito natalino".)

 

Como é possível notar, o texto acima foi escrito a partir de uma notícia de jornal, notícia que, inclusive, lhe serve de epígrafe: "Homem disfarçado de Papai Noel tenta matar publicitária em SP". Publicados num mesmo jornal, de grande circulação em São Paulo, embora ambos os textos sejam narrativos, cada um tem características específicas, bem como propósitos distintos.

A notícia da Folha de S. Paulo, que se resume a uma única linha, é uma narrativa, também conhecida como relato, que não tem maiores pretensões literárias. Sua finalidade é apenas informar. Tão características da narrativa, estas cinco perguntas resumem ambos os textos: Quem? Como? O quê? Quando? Onde?
 

Texto literário

Todavia, apenas a crônica "Espírito natalino", de Moacyr Scliar, se presta aos interesses estético-literários. Partindo do texto jornalístico (que é um simples relato), tem-se a criação, por Moacyr Scliar, de uma narrativa ficcional, na qual se encontram certos elementos estéticos que a compõem e a distinguem do relato.
Como exemplo, tem-se o recurso da descrição quase cinematográfica das personagens. Outra grande "sacada" do autor é, digamos, mostrar (criando de forma imaginativa) como os fatos poderiam ter-se sucedido, pela ótica do matador de aluguel, disfarçado de Papai Noel.

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