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Sociologia

Estados modernos - o governo direto - O Estado contemporâneo

Renato Cancian, Especial para a Página 3 Pedagogia & Comunicação

A mudança na escala da guerra propiciou a transição do "governo indireto" para o "governo direto". A transição para o governo direto levou os Estados nacionais a desempenharem, progressivamente, funções inéditas na áreas social e econômica.

Obrigações e concessões de direitos

Atividades antes exclusivamente restritas à iniciativa privada passaram a ser objeto de interesse e competência dos governos nacionais, como: a constituição de monopólios de produtos essenciais, capazes de gerarem enormes divisas para o tesouro nacional; o controle das rotas de comércios terrestres e marítimas; o controle sobre a distribuição de alimentos; a produção de suprimentos e armas, visando assegurar recursos materiais de forma regular e previsível, etc. Por outro lado, a mobilização dos grandes exércitos nacionais levará à criação de escolas, alojamentos e hospitais militares, etc.

O processo de extração de recursos materiais e humanos impôs obrigações à população como um todo, em troca da concessão de direitos. Mas Charles Tilly assinala que o processo que estabeleceu "obrigações e direitos" esteve longe de ser pacífico: foi marcadamente conflitivo.

Protestos, rebeliões, revoltas e até revoluções eclodiram como forma de resistência e de reivindicações das classes abastadas e das massas populares diante das exigências do Estado. São desses sucessivos processos conflitivos de natureza contestatória e reivindicatória - nascidos no curso do processo de interação entre o Estado e a população - que surgem e se efetivam os direitos de cidadania.

Entre os estudos clássicos que tratam do tema, a obra de Tilly apresenta uma nova interpretação sobre a origem da cidadania moderna: ela teria sido o resultado de um longo processo de ajuste entre "exigências e compensações", envolvendo os interesses dos governos e das populações.

O processo de extração de recursos para realizar as guerras acarretou, dessa forma, não só a imposição de obrigações, mas também a concessão de direitos, o que gerou a cidadania.

Diferenças regionais

Esse processo, no entanto, assumiu formas e sequências bastante variadas, dependendo das características de cada região: economias rurais e comerciais, grau de urbanização, estrutura de classes sociais vigente, etc. Essas especificidades determinaram os meios que os governantes tiveram de empregar para ter acesso aos recursos essenciais de que necessitavam para a prática da guerra.

Charles Tilly faz uma distinção entre o Leste e o Oeste europeus. Ao contrário do Leste, no Oeste europeu o comércio e as relações de troca floresceram, produzindo uma economia altamente capitalizada, que permitiu a proliferação dos núcleos urbanos e das cidades.

Nesses ambientes de proeminência comercial e urbana, os governantes - na sua pretensão de ter acesso aos recursos materiais e humanos de que necessitavam para a prática da guerra - enfrentaram maiores resistências das populações, o que favoreceu o emprego da estratégia de negociações e de barganha. Ou seja, para impor obrigações, os governantes tiveram de oferecer compensações à população.

Encargos não-planejados

No século 19, a intervenção crescente dos governos na vida cotidiana das populações gerou inúmeros encargos não-planejados que, por sua vez, contribuíram para tornar cada vez mais complexa a estrutura dos Estados nacionais.

Sobre essa questão, três pontos devem ser considerados. Primeiro, a luta pelos meios de guerra conduziu à criação e ampliação das repartições e órgãos fiscalizadores, tributários, produtivos, de distribuição, de proteção (instituições judiciais e de polícia) e de assistência social. Atuando em conjunto, esses órgãos impulsionaram a burocratização das estruturas administrativas do Estado nacional. A intervenção e a expansão das atividades dos Estados nacionais nas esferas econômica e social favoreceram amplamente o processo de especialização de tarefas, ou seja, a criação de estruturas burocráticas.

Segundo, a burocratização acelerou a ampliação dos encargos não-planejados, pelo fato de que as próprias organizações burocráticas tenderam a desenvolver interesses e bases de poder corporativos, obtendo privilégios que, para serem assegurados, dependiam da criação de novos órgãos burocráticos.

Terceiro, os cidadãos valeram-se de seus direitos de cidadania, como a participação política em processos eleitorais e legislativos, e procuraram ampliar o grau de intervenção do Estado nas áreas que lhes interessavam, como: emprego, comércio exterior, educação, saúde, seguridade social, etc.

Por volta de 1850, os encargos não-planejados já haviam levado os Estados nacionais europeus a se encarregarem de uma ampla gama de atividades não-militares - que suplantaram enormemente as atividades puramente militares. Assim, a guerra, o fator que levou à formação, consolidação e evolução do Estado nacional, já não era mais o interesse central dos Estados.

Evolução posterior

De 1850 em diante, as atividades militares continuaram a crescer em gastos, mas as parcelas dos orçamentos nacionais destinadas a tais atividades passaram a ser menores, em razão do aumento da renda e da produtividade das economias civis nacionais.

Outro ponto importante se refere ao fato de que, segundo Tilly, nessa época, "a organização militar, que até então era um segmento dominante e parcialmente autônomo da estrutura do Estado europeu, adotou uma posição mais subordinada, transformando-se no maior dos departamentos diferenciados controlados por uma administração predominantemente civil".

As principais causas do deslocamento das organizações militares dentro da estrutura dos Estados nacionais europeus estão relacionadas à contenção dos militares por parte das burocracias e das legislaturas civis e ao surgimento da ideologia do profissionalismo militar, que restringiu a participação dos comandantes na política civil.

Esse processo foi acompanhado pela criação de órgãos policiais (criminais e políticos) e pela expansão de suas tarefas, visando um maior controle da população por meio do monitoramento regular de eventos, movimentos ou organizações que pudessem ameaçar a segurança do Estado e a ordem pública.

O último estágio de formação dos Estados nacionais foi apontado por Charles Tilly como a emergência do fenômeno do "nacionalismo". Os governos passaram a aplicar políticas de homogenização da população, como a padronização das línguas, a expansão dos serviços educacionais e a criação de símbolos nacionais. Todas essas decisões tinham um único objetivo: criar as bases das identidades coletivas e das lealdades nacionais - não só entre a própria população, mas também entre a população e o Estado.

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