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Zumbi era um ou vários guerreiros? "Três Vezes Zumbi" mostra que biografia do herói é invenção

Antônio Carlos Olivieri

Da Página 3, em São Paulo

13/05/2012 06h00

Professores de História da Unesp (Universidade Estadual Paulista), Jean Marcel de Carvalho França e Ricardo Alexandre Ferreira acabam de publicar o livro "Três vezes Zumbi – A construção de um herói brasileiro" (veja a resenha), que desmistifica um herói nacional, ou melhor, que põe em xeque a própria ideia de herói, quando se fala de história.

  • Reprodução

    Imagem do líder negro, comum em livros de história

Na obra, eles mostram como, historicamente, construíram-se três versões de Zumbi, em que o personagem passou de “bandido” a “mocinho”. Neste último papel, Zumbi teria sido, sucessivamente, lutador anti-escravidão, herói da raça negra, e campeão das minorias, sendo, inclusive, homossexual. França e Ferreira concederam a seguinte entrevista ao UOL.

UOL - É possível extrair um denominador comum dos três Zumbis mostrados na obra e dizer como os autores do livro veem Zumbi?

Jean Marcel de Carvalho França e Ricardo Alexandre Ferreira - Há, sem dúvida, traços que são comuns à muitas das construções que mapeamos. Metade dos autores, por exemplo, diz que “Zumbi” designava um cargo, a outra metade, por sua vez, afirma que não, que zumbi era um indivíduo. Ambos os grupos, no entanto, aceitam que se tratava de um ou de vários guerreiros valorosos, guerreiros que muito trabalho deram, ou deu, às tropas governamentais — portuguesas e holandesas — que combateram o quilombo de Palmares. Parte dos textos mapeados garante que Zumbi se matou, uma outra parte, porém, assevera que sua morte foi heróica e que o final dado aos seus restos mortais foi trágico.

UOL - E quanto a Palmares?

França e Ferreira - No que diz respeito ao quilombo, todos os autores admitem que se tratou de um foco importante de contestação à sociedade colonial estabelecida. Os traços comuns, porém, são enganadores, e mesmo aqueles que parecem extremamente semelhantes ganham sentidos diversos à medida que o tempo passa. Foram justamente estas diferenças que, de certo modo, nos “obrigaram” a falar na construção de três Zumbis.

UOL - Considerando as várias construções da personagem, que refletem a época em que foram feitas, mais do que o momento histórico que elas focalizam, o que se pode entender por verdade histórica?

França e Ferreira - A verdade do passado — do mesmo modo que a verdade do corpo, para os médicos, ou que a verdade das partículas, para os físicos, ou que a verdade sobre a matéria negra do universo, para os cosmólogos — é aquilo que, de um lado, os denominados “especialistas da área” admitem como plausível, de outro, e complementarmente, aquilo que os pactos sociais impostos a todos os humanos — aos historiadores, inclusive — estabelecem como verdadeiro. Nesse sentido, a confiança que devemos ter num bom livro de história é a mesma que devemos ter no diagnóstico de um bom médico, no seu diagnóstico baseado nas evidências que a medicina do seu tempo permite enxergar. 

UOL - O livro mostra que a biografia de Zumbi é uma invenção. Como é possível que dados como a infância de Zumbi, por exemplo, se tornem "verdade"?

França e Ferreira - Os mecanismos sociais que transformam um juízo, uma frase, uma descrição em algo verdadeiro são extremamente complexos. É sempre preciso levar em consideração, na medida em que o conhecimento não é somente a busca descompromissada e bem intencionada da verdade, os embates entre grupos sociais, as instituições que produzem o saber, os personagens envolvidos na produção desse saber, em suma, é preciso levar em consideração o tecido social em que um determinado dado ganha o estatuto de verdadeiro. Note que — é obvio que há exceções —, na maior parte das vezes, não há má fé envolvida no processo; trata-se, quase sempre, de uma mudança dos óculos com que olhamos o mundo: quando trocamos de óculos, alteramos a perspectiva que temos do mundo e daquilo que estamos dispostos a admitir como verdadeiro ou como falso.

UOL - O que vocês acham, em termos pessoais, da tese de que Zumbi era gay?

França e Ferreira - A tese do Zumbi Gay aparece no livro como mais uma das muitas teses que tiveram impacto na construção da imagem do herói. Nunca foi nosso interesse discutir se Zumbi era ou não era, “de fato”, heterossexual. De qualquer modo, somos historiadores e, nesse sentido, o uso dos termos “homossexual” e “heterossexual” para designar um homem do século 17 parece-nos inadequado. Para nós, feliz ou infelizmente, as palavras dão forma e consistência ao mundo em que vivemos: palavras diferentes ou com sentidos diferentes, mundos diferentes.

UOL - Com base na ideia de construções históricas, o que vocês acham que um aluno do ensino médio pode esperar dos estudos de história no colégio?

França e Ferreira - A história, como a vemos, tem um único papel, se é que tem algum: mostrar que tudo aquilo que está relacionado ao ser humano é provisório; “o mundo é mudança, a vida, opinião”, dizia o pensador grego Demócrito. Um aluno do ensino médio não precisa necessariamente de heróis ou de verdades imutáveis. Ao contrário, tanto mais maduro ele será, quanto mais ele for capaz de entender que as verdades são pactuadas e que é esse pacto que garante a nossa vida em sociedade.

UOL - Mas como encarar o passado?

França e Ferreira - Não se trata de ensiná-lo a “ser crítico”, quer dizer, ensiná-lo a olhar para o passado e a achar que nada ou ninguém é digno de confiança ou que somente aqueles que contestam a ordem merecem respeito e atenção. Trata-se, sim, de ensiná-lo que os seres humanos têm necessidade de, coletivamente, acreditar em algumas coisas e a desacreditar em outras, que isto é um acordo entre os homens para que a vida em sociedade se torne possível. Isto, ensinar que a verdade é uma construção histórica mas real e necessária, ao mesmo tempo que é libertador, suscita responsabilidades. Cremos que, se a história cumprir minimamente tal papel, já estará de bom tamanho.