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Após golpe de 64, política econômica do Brasil beneficiou multinacionais

Carlos Orsi

Do Jornal da Unicamp

19/03/2014 12h06

O golpe militar de 1964 pôs fim ao debate, que vinha sendo travado até então, sobre o modelo de desenvolvimento econômico a ser adotado pelo país, abraçando uma opção de dependência e associação do capital estrangeiro, diz dissertação de mestrado defendida no Instituto de Economia da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e orientada pela professora Ligia Maria Osório Silva. 

“As formas como se conduziu o debate em torno de algumas questões durante o governo de João Goulart, e como isso mobilizava a sociedade, proporcionavam duas possíveis vias de desenvolvimento: uma nacional-popular e uma dependente-associada”, disse o autor do trabalho, Ulisses Rubio Urbano da Silva.$escape.getH()uolbr_geraModulos($escape.getQ()embed-lista$escape.getQ(),$escape.getQ()/2014/mais-sobre-50-anos-do-golpe-1395241304325.vm$escape.getQ())

Entre as questões em debate estavam a relação do país com o capital estrangeiro, com o campo e entre capital e trabalho. Os pontos principais de discussão eram a reforma agrária, a lei que controlava a remessa de lucros das empresas estrangeiras para o exterior e a distribuição de renda. “A solução dessas questões implicava uma forma de intervenção do Estado na economia”, explicou o autor. 

Com o golpe, “a elite orgânica do capital multinacional e associado tomou o Estado. Era escolhida a via do desenvolvimento dependente. E o empresariado teve papel relevante neste desfecho”, escreve Silva na dissertação. “Essa via trouxe uma maior liberdade para o capital estrangeiro e uma maior associação entre ele e o empresariado nacional. Nessa associação, limitaram-se as possibilidades de transferir os ganhos sociais do desenvolvimento para a classe trabalhadora, por isso o nome dependente-associado”, explicou o autor.

“No que se refere às características econômicas, podemos salientar duas que são fundamentais para a caracterização do estilo de desenvolvimento seguido pelo regime militar: a distribuição de renda, e a maneira como a economia brasileira se inseriu na economia internacional”, diz o texto da dissertação.

Mudanças nas regras beneficiaram multinacionais

“No governo Castelo Branco foi elaborado o PAEG (Programa de Ação Econômica do Governo), e os entraves ao capital estrangeiro foram eliminados através de alterações na lei que limitava as remessas de lucros ao exterior”, diz a dissertação. Também nesse período foi baixada a instrução 289 da Superintendência da Moeda e do Crédito, órgão que possuía algumas das atribuições que, depois, viriam a ser incorporadas ao Banco Central, criado no fim de 1964. Essa instrução permitia que as filiais de empresas estrangeiras no Brasil realizassem empréstimos no exterior. 

“A instrução concedia uma vantagem às filiais de empresas multinacionais, principalmente por garantir uma fonte de liquidez num momento em que a política de combate à inflação restringia o crédito internamente”, explica a dissertação. Esse foi um dos fatores que permitiram “um movimento de aquisições de empresas nacionais por empresas estrangeiras”. A facilidade de acesso ao capital financeiro internacional foi, mais tarde, estendida à indústria nacional pela Resolução 63 do Banco Central.

“Também no que se refere ao financiamento interno, as reformas beneficiaram as empresas multinacionais”, prossegue a dissertação. “O crédito direto ao consumidor, direcionado para o consumo de bens duráveis, beneficiou as indústrias deste setor, nas quais o capital multinacional era dominante”. 

Achatamento dos salários

Além disso, a opção pelo achatamento dos salários, sob o argumento de controle da inflação, retirou poder aquisitivo das classes baixas e beneficiou as classes médias e altas, ampliando o mercado para bens duráveis, produzidos predominantemente pelas multinacionais, e retardando a recuperação do setor produtor de bens não-duráveis, no qual o capital nacional tinha maior participação.

“A forma como foi feita a lei de reajuste salarial, principalmente nos três primeiros anos do regime militar, trouxe uma redução muito elevada do salário real. Isso fez com que a distribuição de renda fosse desfavorável”, explicou Silva. 

A concentração de renda nas classes médias e altas e a política de crédito direto ao consumidor permitiram que o consumo desses bens se ampliasse, justificando os altos investimentos necessários por parte das empresas multinacionais. “Essas duas características de transformação do sistema financeiro: crédito direto ao consumidor e esse tipo de distribuição de renda permitiram alavancar o consumo”, disse o autor.

Essas decisões tiveram um impacto duradouro sobre a economia brasileira. “A reforma da lei de remessa de lucros, a instrução 289 e depois a resolução 63 permitiram o atrelamento da economia brasileira a uma dependência externa mais relacionada ao setor financeiro, não somente produtivo, como era até então”, disse Silva. “E essa forma como aumenta a dívida externa terá consequências sobre como se resolveria o endividamento externo, a problemática do endividamento externo” nas décadas seguintes.

Industriais pró-golpe criticaram PAEG

Em sua maioria apoiadores do golpe, parte dos industriais passou, em alguns momentos, a criticar os rumos da política econômica de Campos e Bulhões. “Durante o segundo semestre de 1965, o governo Castelo Branco recebeu inúmeras críticas à sua política econômica. Adquiriu maior importância, no entanto, o fato de estas críticas serem feitas por empresários e alguns governadores até então alinhados ao golpe”, descreve a dissertação. “Entre as entidades representativas dos industriais, partiram críticas da Fiesp e da CNI”.

O modo escolhido para o combate à inflação, de repressão da demanda e enxugamento da liquidez, diziam os críticos, trazia uma maior dificuldade para as empresas se financiarem com recursos próprios.

“As principais reivindicações dos industriais neste período eram com relação ao crédito e à carga tributária. Ambas se relacionavam com as condições de liquidez do setor privado”, prossegue o texto, que mais adiante diz: “As críticas assumiam o sentido da possibilidade de combater a inflação através de uma política que garantisse a retomada do desenvolvimento (...) Outra medida que parece não ter agradado os industriais foi a política de estímulos à estabilização de preços aplicada pelo governo Castelo Branco”.

Com a eleição de Costa e Silva para a Presidência e a chegada de Antônio Delfim Netto ao comando da economia, o diagnóstico das causas da inflação do país muda e, com ele, a política econômica. “O que procuro entender é o que esses reclamos do empresariado, principalmente com a redução da liquidez, podem ter gerado ou influenciado na transformação para uma política monetária um pouco mais folgada, com aumento de liquidez”, explicou o pesquisador.

“A diferenciação principal que vejo entre os governos Castelo e Costa e Silva é no trato da política anti-inflacionária, principalmente, e no que ela implicava para a retomada do crescimento econômico nos dois governos, na transição da equipe Campos-Bulhões para o Delfim”, disse Silva.

A mudança de avaliação quanto à origem da inflação tinha “dois pilares”, informa a dissertação: a causa da elevação dos preços passou a ser vista como, predominantemente, a elevação dos custos, não a demanda; e existiria uma capacidade ociosa na indústria. “Como havia capacidade ociosa e inflação de custos, o governo acreditava que estimulando as empresas, poderia haver crescimento com redução da inflação. Por isto, previa aumentar a liquidez das empresas, diminuir o ritmo de expansão dos custos e aumentar a demanda”, prossegue o texto.

Na conclusão de seu trabalho, Silva escreve que as insatisfações dos empresários nacionais “conduziram a alterações na política econômica que foram relevantes para a retomada do crescimento, como: isenções tributárias, maior liquidez para as empresas, minidesvalorização cambial e alteração da política de controle de preços”.

Ele adverte, no entanto que será necessário um “trabalho de maior fôlego” para desvendar a rede de influências – pessoais e institucionais – que levou os industriais brasileiros a serem ouvidos na elaboração da política econômica no governo Costa e Silva e no de seu sucessor, Emílio Garrastazu Médici.