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Não podemos ignorar 50% da população, diz paquistanesa que fundou ONG

A paquistanesa Gulalai Ismail fundou, aos 16 anos, a ONG Aware Girls  - Reprodução/Facebook
A paquistanesa Gulalai Ismail fundou, aos 16 anos, a ONG Aware Girls Imagem: Reprodução/Facebook

Marcelle Souza

Do UOL, em Doha*

24/11/2014 06h31

Aos 16 anos, a paquistanesa Gulalai Ismail percebeu que era diferente dos seus irmãos. Na vizinhança, essa era a idade em que as meninas se casavam e começavam a ter filhos. Mas esse não era o destino que ela queria ter.

“Eu nasci em uma família incrível, mas isso não quer dizer que a minha vida foi fácil, como foi para os meus irmãos. Eu ia para a escola, mas em casa eu tinha que ajudar a minha mãe, enquanto os meus irmãos podiam ir para a rua brincar. E eu pensava: o que há de errado?”, conta.

Com essas perguntas na cabeça, Gulalai, hoje com 28 anos, fundou a Aware Girls ao lado da irmã  em 2002. A organização dá suporte a meninas e mulheres do Paquistão para que tenham acesso igualitário à educação, ao trabalho, à saúde e a outros serviços públicos.

Em todo o mundo, 65 milhões de meninas estão fora da escola tanto no ensino fundamental quanto no ensino médio, segundo dados da Unesco (Organização das Nações Unidas para a educação, a ciência e a cultura). O Paquistão é o segundo país com o maior número de meninas fora da escola no ensino fundamental, são 3 milhões, atrás apenas da Nigéria, onde 5,5 milhões de garotas não frequentam a sala de aula.

Gulalai Ismail

  • Reprodução/Facebook

    Se você ignora mais de 50% da população do mundo, não pode esperar viver em um mundo decente e desenvolvido

    Gulalai Ismail

“Eu não queria que isso [casar e sair da escola] acontecesse com a minha prima, eu não queria que isso acontecesse com nenhuma outra garota”, diz. “Para trabalhar, dirigir ou abrir uma conta no banco é preciso ter no mínimo 18 anos, segundo a legislação [paquistanesa]. Aos 16 anos, as meninas são consideradas ‘velhas demais’ para se casar e começar a ter filhos, mas jovens demais para esses direitos civis”, afirma. 

Um problema de todos

Em pouco tempo Ismail percebeu que para colocar uma garota na escola era preciso envolver toda a comunidade. “Se nós queremos trabalhar com uma garota, temos que trabalhar com toda a família”, diz Ismail.

Na Índia, a organização Educate Girls também tenta combater o problema envolvendo toda a comunidade, a partir de lideranças locais capazes convencer as famílias da importância da escola para as meninas da região. “Se eu e você vamos a uma vila e dizemos ‘Com licença, você tem que mandar a sua filha para a escola’. Isso não vai mudar. Mas se é alguém daquela vila, que conhece todo mundo, você consegue entregar a mensagem”, diz Safeena Hussain, diretora executiva da ONG.

Neste ano, Educate Girls foi um dos seis projetos que receberam o Wise Awards 2014, uma premiação da Fundação Qatar para iniciativas de destaque na educação pelo mundo.

De acordo com Hussain, na Índia as meninas deixam de ir à escola especialmente por motivos culturais. Para os pais, é mais importante que a filha esteja pronta para o casamento e para cuidar da casa e dos filhos.

Safeena Hussain

  • Divulgação/Wise

    Nós dizemos 'se ela tiver um filho e tiver que levá-lo ao hospital, ela vai precisar ler a receita médica'. Sendo escolarizada, vai poder cuidar melhor do seu filho.

    Safeena Hussain

Segundo a Unesco, mães escolarizadas são a chave para acabar com a desnutrição infantil a longo prazo.

Trabalho reconhecido

Se Gulalai Ismail percebeu aos 16 anos o quanto era difícil ser mulher e querer estudar no Paquistão, a britânica Ann Cotton conheceu essa realidade em 1991, quando visitou pela primeira vez o Zimbábue. Dois anos depois, ela fundou a Camfed (Campaign for Female Education) para dar suporte a meninas que queriam estudar. A organização atua hoje no Zimbábue, Zâmbia, Gana, Tanzânia e Malawi.

“Eu pensei ‘vamos mostrar o valor da educação para meninas’. Quando elas são educadas, os benefícios voltam para a comunidade”, afirma Cotton. No último dia 4 de novembro, ela recebeu o prêmio Wise Prize for Education, da Fundação Qatar, por sua contribuição para a educação. Até agora, Camfed já ajudou mais de 1,2 milhão de crianças a frequentar as aulas.

Além do trabalho de porta em porta, o projeto também busca a parcerias dos governos na tentativa de ampliar o acesso das meninas à educação. “Educação é responsabilidade de todos", afirma Cotton. De acordo com a Unesco, uma em cada oito garotas se casam antes de completar 15 anos na África Subsaariana.

Se o trabalho parece de formiguinha, essas mulheres mostram que, pela educação, é possível romper barreiras culturais, religiosas e estruturais. Na Índia, Educate Girls também constrói banheiros para meninas –ausentes em muitas escolas. Na África, Camfed ajuda a desenvolver lideranças femininas. No Paquistão, Aware Girls ensina prevenção contra o vírus HIV.

“Quando promovemos a educação de meninas, isso não muda apenas a vida delas, mas também muda a dinâmica da sua família e da sua comunidade. Se você ignora mais de 50% da população do mundo, não pode esperar viver em um mundo decente e desenvolvido”, diz Ismail.


*A jornalista viajou a convite do Wise (World Innovation Summit for Education), da Fundação Qatar