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Há um ano, "primavera feminista" ditava o tom da 1ª escola ocupada em SP

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Ocupação em Diadema: Rafaela Boani (à esq.), 17, e Camila Victoria Fernandes, 15
Imagem: Janaína Garcia/UOL

Janaina Garcia

Do UOL, em São Paulo

13/11/2016 06h00

À primeira vista, a estudante Rafaela Boani, 17, em nada difere de tantos outros adolescentes na idade dela: expansiva, com um vocabulário repleto de gírias e uma espontaneidade que pede, vez ou outra, desculpas por um palavrão mais afoito. Alguns minutos de conversa, porém, derrubam logo o estereótipo --especialmente quando ela conta a frase preferida: "'Só a luta muda a vida'. Eu levo essa frase para a minha vida", conta.

Rafaela foi uma das cabeças da ocupação do Colégio Estadual de Diadema, o Cefam, na Grande São Paulo, há um ano. A escola puxou uma fila que, no auge desse novo movimento estudantil, chegou a contabilizar 200 unidades de ensino tomadas por estudantes contra a proposta de reorganização do ensino feita pelo governo do Estado de São Paulo. 

A resistência dos estudantes e a repressão da Polícia Militar acabaram respingando na popularidade do governador Geraldo Alckmin (PSDB), que é nome para as eleições presidenciais de 2018, e o fizeram revogar a medida via decreto.

Rafaela conversou com o UOL sobre a primeira ocupação, que completou um ano no último dia 9. A conversa foi na terça-feira (8), um dia antes de os alunos decidirem em assembleia reocupar o prédio da escola. Sem reorganização no horizonte, o mote, agora, é outro e em âmbito nacional: os estudantes de Diadema se unem a centenas de escolas e universidades pelo país ocupadas desde outubro contra a MP (Medida Provisória) 746, que reforma o ensino médio, e a "PEC do Teto", a Proposta de Emenda à Constituição que congela os gastos públicos pelos próximos 20 anos. No Paraná, por exemplo, foram mais de 800 escolas estaduais ocupadas.

Sem divisão de gênero: meninas e meninos na cozinha

Um ano depois da primeira ocupação, Rafaela diz que a força das meninas secundaristas foi o fator-chave para o desempenho do movimento.

A participação das meninas nesse processo foi algo explosivo, expansivo; a maioria dos alunos nas ocupações era composta por mulheres. Foi uma primavera feminista, secundarista, foi f***.

De acordo com ela, com frequência, nas ocupações –e não só no Cefam, mas em outras unidades com as quais os “ocupas”, como são chamados os estudantes das ocupações, dialogavam --, eram feitos debates que extrapolavam o currículo tradicional dos estudantes. Nesse contexto, por exemplo, entravam as temáticas de gênero, que, nos anos anteriores, despertaram a fúria de setores conservadores nos debates sobre os planos de educação.

"Dentro das ocupações tínhamos uma série de atividades culturais referentes a gênero. Nisso, aquele menino que talvez fosse um pouco machista reconhecia que estava errado em algumas atitudes que, perante a sociedade lá fora, seriam as corretas. Capinamos a escola e lavamos louça de alunos e alunas; meninos arearam panelas, fizeram comida. Tanto que as mães chegavam à escola e diziam: 'O que vocês fizeram com meu filho? Ele está lavando as panelas, ajudando a cozinhar'", conta.

Para a estudante, a "primavera feminista" dos secundaristas ajudou a mudar comportamentos que não serão necessários apenas no ambiente escolar. "Os meninos começaram a perceber que não é porque eu sou mulher que eu sou 'sexo frágil', como gostam de nos estereotipar na sociedade. Nesse sentido, a experiência na ocupação serviu para mostrar que a gente junto, com a igualdade de gênero, pode ajudar a construir um movimento --que foi o que aconteceu."

Diadema foi "gatilho" para ocupações de 2016

Rafaela conta que buscou em cartilhas na internet, com uma amiga, as dicas sobre como ocupar --sobretudo pelo trancamento das unidades com estudantes dentro delas. "A ocupação é uma ação de muito impacto, mas, se não existissem os alunos, não existiria a escola. Foi muito ruim ver que pediram reintegração de prédios que, na verdade, são nossos", opina.

Sobre a série de ocupações neste ano, a jovem classifica ações como a de Diadema --e a do colégio estadual Fernão Dias Paes, em Pinheiros (zona oeste de SP), na sequência-- como uma espécie de "gatilho".

Porque sabemos que hoje os movimentos de ocupação são uma preocupação para o presidente [Michel] Temer sem ele sequer saber que gente como eu existo. Mas eu sei que ele existe e posso confrontá-lo.

É "hipocrisia" MEC tentar responsabilizar entidades

As ocupações de escolas e universidades públicas em vários Estados brasileiros acabaram levando o MEC (Ministério da Educação) a adiar a prova do Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) para mais de 270 mil estudantes. Eles farão as provas nos dias 3 e 4 de dezembro, e não em 5 e 6 de novembro, como fizeram mais de 8 milhões de alunos.

Após o Enem, o ministro Mendonça Filho (DEM) disse que a pasta pediria providências à AGU (Advocacia Geral da União) para responsabilizar as entidades estudantis --as reais fomentadoras das ocupações, na avaliação do governo. Antes disso, o ministro havia dito que partidos da esquerda seriam "mentores" da ação dos estudantes.

Os estudantes, em sua maior parte, enfatizam a horizontalidade (ou seja, a falta de uma hierarquia definida) e o apartidarismo do movimento. 

"O que o governo está tentando fazer é acabar com movimento colocando a sociedade contra os estudantes. Fazem isso como se alguém mais forte comandasse a gente, mas, na verdade, a gente começou porque a gente quis, não porque mandaram a gente ocupar", diz Camila Victoria Fernandes, 15, aluna do 1º ano do ensino médio e também ativa na ocupação de um ano atrás em Diadema.

É hipocrisia afirmar que tem entidades nos dando respaldo. Querem colocar estudante contra estudante. O governo pensa que as entidades estudantis são politizadas e politizam o resto da população, mas a verdade é que hoje temos muitos meios de nos politizar: seja pela mídia alternativa ou por uma entrevista como esta.

"Estou conversando com você e acho que estou no meu momento de politização contando o que passamos na ocupação. A partir disso, você vai escrever uma matéria –e isso é algo que pode fazer com que eu ajude outras pessoas a se politizarem também", afirma.

Indagadas pela reportagem sobre o balanço desse um ano de ocupação também em relação à comunicação dos estudantes com a sociedade –uma vez que, sobretudo no Paraná, foram diversos movimentos pela desocupação das escolas --, as estudantes admitem que falta, ainda, um “trabalho de base” nesse sentido.

"Ocupar esse espaço mudou a minha vida"

O que mudou na vida da adolescente que hoje dá entrevistas e participa de documentários sobre as ocupações? "Nunca fui alguém egoísta, mas hoje eu quero entender melhor o que as pessoas estão passando. Ocupar esse espaço é algo que mudou a minha vida e me ajudou nessa tarefa: me tirou de um lugar em que eu nem sabia o que estava fazendo e me tornou uma pessoa que nunca esperei que pudesse ser", diz Rafaela.

"Tem muitos pais que não sabem o impacto da PEC do teto de gastos para a educação dos filhos, por exemplo. A minha mãe até dormiu na ocupação, sempre me apoiou e, depois da ocupação, a escola até reativou o conselho escolar [com representantes dos alunos, dos pais e dos professores], mas nem sempre é interessante para o colégio que os alunos possam fazer a comunicação do que, de fato, se passa. Tem ainda o que avançar", diz.

No fim da entrevista, na terça-feira, a reportagem quis saber se, a exemplo de Minas e Paraná, Diadema tinha possibilidade de passar por nova ocupação estudantil. "Não sei por que ainda não tem ocupações em São Paulo, mas acho que elas podem voltar a acontecer a qualquer momento. E vai ser, de novo, mais um aprendizado", afirmou Camila. A ocupação ocorreria cerca de 24 horas depois.