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Enem: Desigualdade evidencia dificuldades na escola pública com redação

Enem 2021 já é considerado o mais excludente e desafiador para estudantes pobres e vulneráveis - Keiny Andrade/UOL
Enem 2021 já é considerado o mais excludente e desafiador para estudantes pobres e vulneráveis Imagem: Keiny Andrade/UOL

Ana Paula Bimbati, Carlos Madeiro, Marcela Lemos e Rosiene Carvalho

Do UOL, em São Paulo, e colaboração para o UOL, em Maceió, no Rio e em Manaus

04/12/2021 04h00

Páginas em branco, problemas com gramática e dificuldade para entender o tema. Foi o que enfrentaram alunos de escola pública ao escrever —ou ao menos tentar— a redação do Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) deste ano, realizado em 21 de novembro.

O tema, "Invisibilidade e registro civil: garantia de acesso à cidadania no Brasil", pegou muitos participantes de surpresa. Pedro Victor Ferreira da Silva, 20, por exemplo, repetiu o problema do ano anterior: a redação foi entregue sem nenhuma linha preenchida. Zerar a redação acaba eliminando as chances de o aluno conseguir uma vaga na faculdade.

"Deu um branco na hora, não saiu nada. Nas outras partes, fui mais ou menos", conta. O agricultor mora em um assentamento da zona rural de Murici (a 59 km de Maceió) e dividiu o tempo de sua preparação com a atividade na roça.

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Pedro Victor Ferreira da Silva mora em assentamento rural em Alagoas
Imagem: Gabriel Moreira/UOL

As estudantes Raissa Silva Sabino, 18, e Thais de Souza, 28, também se surpreenderam com o tema, mas fizeram os textos pedidos pelo exame.

"Consegui escrever, porque acaba falando da minha realidade, dessa falta de acesso a direitos. Citei também casos de abandono parental", explica Raissa.

Ela vive na casa da avó, em Caieiras, porque onde morava, na divisa da cidade com a zona norte da capital paulista, não havia espaço para estudos nem acesso à internet.

Já Thais, mãe solo que estuda por conta própria para realizar o sonho de concluir o ensino superior, conseguiu desenvolver bem o texto, porque recentemente ficou mais de três horas na fila para conseguir um novo documento.

"Acompanhei vários moradores de rua tentando emitir identidade para ter o registro e também acesso a políticas públicas. Uma realidade bem próxima a mim. O tema caiu como uma luva", disse, animada.

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A mãe do Benjamin e estudante Thais Figueira de Souza
Imagem: Lucas Landau/UOL

Para ajudar na construção do texto, antes de começar a escrever, ela utilizou o Slam —competição de poesia falada. "Uma das técnicas é fazer um mapa do que pode ser tratado no texto, o que mostra possibilidades, e isso me ajudou na construção da redação", explica.

Pedro afirma que no próximo ano vai focar na preparação para escrever textos. "Vou treinar mais a redação, sem dúvida. Espero fazer uma prova melhor. Não vou desistir", diz.

Estudo feito por pesquisadores da FGV (Fundação Getúlio Vargas) mostrou que não são apenas os critérios socioeconômicos que impactam na nota da redação, mas também a região onde o aluno mora.

"A análise regional nos ajuda a entender que existe um impacto na nota da redação. O que não conseguimos confirmar, mas temos de hipótese, é que a variedade linguística e até mesmo fatores culturais podem influenciar nesse resultado", explica Anne Caroline de Freitas, professora e doutoranda em ensino na USP (Universidade de São Paulo).

Já a jovem indígena Vivian Baré, 17, diz que pode ter perdido pontos na redação em relação à ortografia e à gramática. Ela mora em Parque das Tribos, na periferia de Manaus, e se preparou com a ajuda de um cursinho.

"Estou ainda com expectativa boa para a primeira prova e redação. Não tenho certeza, mas estou esperando", contou.

Textos longos e ansiedade

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Vivian Baré, jovem indígena que fez seu 1º Enem
Imagem: Bruno Kelly/UOL

Os estudantes avaliaram que a prova, que dura dois dias com 90 questões em cada um, é cansativa e trabalhosa. "Os textos eram muito longos e, quando eu terminava de ler, minha cabeça dava um bolo e já tinha outro texto grande", detalha Vivian.

Thais também comentou sobre o tamanho dos enunciados e a necessidade de interpretação para solucionar as questões.

A ansiedade e relembrar todo o esforço empenhado ao longo do ano, deixou Raissa desestabilizada durante a prova. "Eu fiz [o Enem] e, no final, isso é que é importante. Chegar até aqui e conseguir fazer a prova já é uma grande conquista, porque o último ano não foi nada fácil", diz a estudante.

Professores ouvidos pelo UOL afirmaram que a edição 2021 ficou mais conteudista com a escassez de perguntas no banco responsável pelos itens do Enem. Dizem que algumas questões pediam o uso de fórmulas. Com isso, de acordo com os especialistas, os participantes não conseguiam resolver apenas relacionando com seu cotidiano, por exemplo.

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