Um defunto estrambótico

Análise das Memórias póstumas de Brás Cubas

Antônio do Amaral Rocha

Passados 100 anos da morte de Machado de Assis, ao contrário do que poderia acontecer, só cresce o interesse por sua obra. Entre as criações da chamada fase madura do autor, destaca-se "Memórias póstumas de Brás Cubas", objeto deste estudo de Valentim Facioli, que traz uma abordagem reveladora.

Em "Um defunto estrambótico" (o mesmo que a sua variante estrambólico, pouco conhecida), o autor define o defunto-narrador-autor como uma representação metafórica de um Brasil escravista, contaminado por contradições entre o arcaico e o moderno. E se esse é um ponto de destaque da análise, não é só essa implicação que o estudo aponta.

Em "Um defunto estrambótico" define-se como Machado opera uma estranha relação entre seu narrador-defunto e o leitor. Trata-se, em primeira análise, de uma brincadeira, um capricho, um desrespeito, uma fraude, um embuste? A narrativa machadiana apresenta uma ruptura com o princípio básico do Realismo, porque aqui quem fala, pensa e expõe as idéias, ora coerentes, ora estapafúrdias, não estaria em condições de fazê-lo. A um defunto só restaria ser devorado por vermes, pois não é esse o destino reservado aos que já estão com os "pés juntos"? Mas não nas "Memórias póstumas". Há uma quebra da verossimilhança e da confiança que depositamos num autor e somos atormentados com idéias mirabolantes de um defunto a nos atazanar a vida. Seria o defunto Brás uma "alma penada" a assombrar os leitores, ou a opção de Machado tem outros desdobramentos que não se percebe numa primeira leitura?

Outro elemento complicante de fundo da narrativa de Machado (ou seria do defunto Brás Cubas?) que Facioli bem analisa é aquela em que o leitor é posto a acreditar ou a desconfiar do que do que está sendo dito, pois o ponto de vista da narrativa é sempre do narrador-defunto e não existe outra fonte a respeito dos fatos narrados. E, mais complicações ainda o leitor enfrenta quando o narrador afirma que "só fala a verdade", pois na condição em que se encontra "não teria por que se comprometer com as mentiras ou meias-verdades dos vivos". Puro delírio? Embuste? Farsa? E se é uma farsa, quem é o farsante? Machado, Brás Cubas ou seria esse delírio um retrato espelhando o Brasil da época?

Não se pode esquecer que Brás Cubas é uma perfeita paródia do nome do colonizador português, aquele que fundou a cidade de Santos e São Vicente, no litoral de São Paulo, e, nesse caso, não estaria Machado nomeando os bois e, por extensão, dando ao seu personagem um pouco daquilo que significou a colonização do Brasil feita à "moda portuguesa", com todas as suas implicações, e tudo isso aumentado, pois Brás Cubas é um cavalheiro rico e da classe dominante, tal como aquele preador de índios e maior proprietário de terras da baixada santista? E o que dizer do nome Brás? Não guarda uma semelhança com pau-brasil e, por conseqüência, com Brasil? Também esta implicação do nome Facioli não deixa passar.

Em suma, as análises contidas em "Um defunto estrambótico" enfrentam as traições que espreitam desta narrativa machadiana, especialmente "as astúcias, máscaras, meias-verdades, meias mentiras e fraudes perpetradas pelo narrador-defunto", cujas memórias retratam um Brasil para a posteridade, feitas com humor, ironia, sátira, melancolia, ruína e morte. É o registro de Machado para um universo de personagens alopradas e estrambóticas, cuja presença no título deste estudo de Valentim Facioli é plenamente justificada.

A destacar, ainda, uma bibliografia comentada e uma elaborada lista de 14 perguntas, postas no final, que questiona e instiga o leitor a conferir o que conseguiu apreender da leitura.

Um defunto estrambótico

Análise e interpretação das Memórias póstumas de Brás Cubas

Valentim Facioli

Nankin Editorial/Edusp

184 págs.

 

Fonte: é jornalista, com estudos de pós-graduação em Literatura Brasileira e Cinema. Trabalha como editor, artista gráfico e resenhista, colaborador free-lance de diversas publicações em São Paulo

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