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Sobre diálogo, educação, democracia, escravidões, monstros e mulas sem cabeça

Guilherme Perez Cabral

17/08/2015 06h00

Na democracia, não dá para pensar em educação sem diálogo.

É a partir do contato e da conversa com os outros que nos formamos, aprendendo os conhecimentos, os hábitos, as habilidades, os valores do grupo social. E essa conversa da qual surgimos é, ao mesmo tempo, o espaço para a construção e revisão de todas as verdades e justiças e injustiças aprendidas. Habermas diz: no diálogo, porque passíveis de serem criticados, os conhecimentos podem ser corrigidos. Permite aprendizado a partir dos erros explicitados.

Isso tem tudo a ver com democracia. Em última análise, com a regra da maioria, as eleições periódicas, os direitos de participação da vida política, os direitos e liberdades individuais, os direitos a saúde, alimentação, assistência aos desamparados, educação, etc, a Constituição projeta a democracia como um grande e abrangente diálogo.

Mas estamos longe disso. O diálogo é não uma coisa que temos visto, com frequência, por aí.

Em encontro do Grupo de Pesquisa “Educação e Direito na Sociedade Brasileira Contemporânea”, que lidera, João Virgílio Tagliavini, fazendo referência ao conto de Julio Cortázan, falava da “casa tomada” que se tornou nossa mente.

Nossa mente está tomada de monstros que nos escravizaram. Mulas sem cabeça, almas penadas, zumbis e vampiros. Seu testemunho de humanidade é a linguagem das opiniões rasas e preconceituosas, da violência, da discriminação, do esporro, do senta e escuta, do cala a boca. Hospedando em si a humanidade que conheceram, nossos monstros são arrogantes, autoritários, severos, inquisitoriais, desumanos. São donos da verdade. Bastiões da liberdade, da justiça e da razão que negam, sistematicamente. Tudo julgam e condenam, portanto. Xingam, sem pudor. Sabendo de tudo, dispensam a conversa, expediente somente necessário para quem quer encontrar algo que não sabia.

Vivemos, sem dúvida, o “declínio da fala”, referido por Adorno.

Precisamos, urgentemente, esvaziar as mentes dos monstros que as habitaram e as superlotaram, sem deixar espaço para mais nada. Nesse tempo que, “ainda é de fezes, maus poemas” (nauseando Drummond), precisamos de uma desconstrução de valores e verdades que é, também, reconstrução.

O diálogo aparece como a alternativa que sobra para quem não quer impor a si e a seus monstros ou – o mais comum – para quem, simplesmente, não quer aceitar goela abaixo monstros e fantasmas alheios. Parte do reconhecimento de que não dá mais para decidir, a priori e de uma vez por todas, quem tem que aprender com quem; quem tem que decidir por quem.

O desafio é gigantesco: aprender a conversar e consolidar o diálogo, a partir da própria experiência do diálogo em construção. Remete-nos à educação para a democracia, por meio da incipiente e frágil vivência da democracia. Não há outro caminho. Diálogo e democracia não são práticas que se aprendem sentado na cadeira, em silêncio, anotando no caderno o que afirma o professor, para repetir, depois, na hora da prova.

Por enquanto, repetimos e revivemos, cotidianamente, mudos ou aos xingos (a depender do papel que ocupamos), a história do escravo Prudêncio, narrada por Machado de Assis. Feito “cavalo de todos os dias” do ainda menino Brás Cubas e por ele açoitado, fustigado, um dia ele foi liberto. Teve, então, seu próprio escravo, que vergalhava em praça pública: “Era o modo que Prudêncio tinha de se desfazer das pancadas recebidas – transmitindo-as a outro”.