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Educadora da UnB: reforma é imposta e feita para adequar currículos ao Enem

Edileuza Fernandes da Silva, da Faculdade de Educação da UnB - Arquivo pessoal / divulgação
Edileuza Fernandes da Silva, da Faculdade de Educação da UnB Imagem: Arquivo pessoal / divulgação

Janaina Garcia

Do UOL, em São Paulo

22/09/2016 19h56

Uma reforma imposta e sem a participação de setores diretamente interessados em discutir as melhorias na educação, como alunos, professores, pesquisadores e universidades, e sem explicar como as escolas darão conta de expandir a carga horária em uma situação de ensino integral.

Para a professora Edileuza Fernandes da Silva, da Faculdade de Educação da UnB (Universidade de Brasília), são vários os pontos negativos de uma reforma no ensino médio apresentada na forma de uma medida provisória e sem responder, por exemplo, de que maneira ela vai incidir no Enem (Exame Nacional do Ensino Médio).

Leia, a seguir, a entrevista que ela concedeu ao UOL após o anúncio da reforma por parte do governo federal.
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UOL – A senhora concorda que a reformulação do ensino médio seja promovida por meio de medida provisória? Por quê?
Edileuza Fernandes da Silva – É muito complicado pensar em uma perspectiva de política de educação definida por meio de medida provisória. Esse fator, por si só, já dá a conotação de uma reforma imposta. E, de fato, não temos sinais, a partir do que tem sido sinalizado, de que isso venha de fato melhorar a qualidade do ensino médio. Sabemos que o ensino médio é uma etapa da educação básica que tem exigido de governos, educadores, pesquisadores, universidades e da própria sociedade um olhar todo especial porque tem um caráter de terminalidade, mas também de continuidade.

Porque é a partir da educação básica que a possibilidade de acesso à educação superior.

Sabemos que estamos avançando, ao longo dos últimos anos, no sentido de democratizar o acesso a todos – ainda que seja sabido que não há, ainda, como afirmar que o Brasil já conseguiu garantir o acesso a todos os jovens de 14 a 17 anos ao ensino médio. Ainda temos jovens fora dessa etapa por inúmeros fatores, inclusive pela necessidade de sobrevivência, de inserção no mercado de trabalho....

O ensino médio é de fato uma etapa especial, como toda a educação básica – porque o aluno passou por alfabetização e por todo o ensino fundamental até chegar ao ensino médio. É preocupante implantar uma reforma dessas assim -- denota que não houve a disposição de dialogar com sujeitos que são importantes, especialmente professores e estudantes.

Movimentos organizados do mundo inteiro dão sinais de que discordam das propostas sinalizadas. E essa reforma, como foi apresentada, vai ter que propor uma emenda à Lei de Diretrizes e Bases para promover essa reformulação. Ela está focando na questão do tempo na escola ao ampliar a carga horária e mexer no currículo, por exemplo. Mas essas mudanças, no sentido de proporcionarem melhorias na perspectiva da qualidade da educação, não dão certeza de que serão obtidas.

Quando se amplia o tempo do jovem na escola, por exemplo, tem que se pensar em outras questões: qual a condição física das escolas hoje? Há laboratórios, refeitórios, bibliotecas preparados para atender esse maior tempo do aluno na escola? E a formação dos professores para esse ensino integral? Há que se pensar em conjunto de coisas – desde a formação dos professores à mudança na estrutura das escolas e nos currículos.

O que estamos vendo é uma preocupação exclusiva com a adequação de currículos aos exames externos, como, e especialmente, o Enem. O currículo do ensino médio está sendo adequado para se alinhar aos exames externos, e isso é muito sério.

Precisamos pensar o currículo com conhecimentos universais, mas com conteúdos locais e filosóficos, sociológicos, estéticos e formação para a cidadania. A própria Constituição Federal garante isso. E como vai se pensar essa formação para a cidadania se os jovens não estão sendo ouvidos? Não podemos olhar a escola só pelos indicadores –a escola é muito mais que um índice do Ideb [Índice de Desenvolvimento da Educação Básica].

UOL – Na prática, na sua avaliação, o que vai mudar? O que representa essa mudança para os estudantes e para os professores?
Edileuza –
Não sabemos quais os mecanismos deles de metodologia para implantação dessa reforma. Mas as mudanças apontadas tratam especialmente da ampliação do tempo de aula no ensino médio, com jornada integral –de 800 para 1.400 horas. Para isso, o aluno tem que ficar mais tempo na escola – mas o que não foi finalizado nessa reforma: não tem como mexer no tempo sem mexer no espaço. Se vão ampliar o tempo de permanência do aluno na escola, como esse espaço será trabalhado? Sabemos que centros de  educação no ensino médio apresentam uma precariedade do ponto de vista de equipamentos laboratórios.

Outro eixo dessa mudança é o currículo, organizado em áreas. Essa prerrogativa, de certa forma, precariza o trabalho do professor. Vai ter que se mexer na forma de contratação do professor – não sabemos se será por concurso; se um professor de física poderá dar aula de matemática, por exemplo. Como o profissional vai prestar um concurso para física, tendo que, depois, dar aula de matemática? Os professores poderão ser contratados por notório saber, mesmo sem formação em determinada área? Vai ter que se pensar uma forma de superar o déficit de professores no ensino médio hoje, que já existe – principalmente matemática e física.

UOL – O impacto vai ser o mesmo a alunos de escolas públicas e privadas?
Edileuza – Essa relação público e privada é complexa, porque não sabemos como a escola pública está vendo isso --até porque a reforma no ensino médio vai demandar alteração na LDB. Assim, mexerá tanto com uma quanto com a outra, mas a escola pública não faz seleção de pessoas para ter acesso a ela; todos que a procuram têm possibilidade de ingresso. Na escola privada, a gente sabe que é outra lógica: é uma empresa, tem suas regras, mas também vai ter seguir normativas. Mas a diversidade de perfis diferenciados de sujeitos é muito maior na escola pública -- temos trabalhadores estudantes; estudantes mais jovens; faixa etária já adulta... e isso requer inclusive pensar nos currículos e nos projetos pedagógicos para contemplarem essa pluralidade.

UOL – Como fica o acesso desses estudantes ao ensino superior?
Edileuza – Não está claro ainda se vai mudar a política de acesso à universidade –com Reuni (Reestruturação e Expansão das Universidades Federais) e financiamento, por exemplo. O que já foi sinalizado é um interesse em mexer na estrutura do Enem, que, hoje, tem um caráter de garantir ingresso do estudante na educação superior. Ainda há muitas questões a serem esclarecidas.

Carece de se ouvirem gestores que estão na escola e são sujeitos que de fato implementam o currículo, o colocam em ação. Porque, na história da educação brasileira, currículos impostos, que não representam os anseios de professores e estudantes, são difíceis de ser implementados, pois não são colocados em ação pelo professor. Sem dizer que é preciso dar voz aos estudantes e às universidades nesse processo. É preocupante esse movimento de descontinuidade de políticas públicas que estavam sendo implementadas no ensino médio –como com o Pacto Nacional de Formação do professor do ensino médio e a revisão do currículo. Em que pesem as discordâncias, havia esse movimento de discussão do ensino médio --essa descontinuidade e essa polarização não contribuem para melhorar a educação.

UOL – De que maneira a reforma deve repercutir no Enem?
Edileuza – Já há sinais de que o exame será reformulado. Prefiro não me posicionar ainda sobre ser otimista em relação a isso –só quando essas propostas estiverem mais claras para todos é que poderemos analisá-las. Inicialmente, não tenho uma perspectiva de otimismo pela forma como as coisas estão se dando, como estão sendo apresentadas. Os alunos são os sujeitos mais importantes desse processo, é para eles e com eles que devemos pensar e fazer educação. Isso não ocorreu com essa reforma.