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Sapato voador, gravidez e bullying: a rotina de uma mediadora nas escolas

Leonor Lopes, professora-mediadora de conflitos de uma escola pública de São Paulo - Simon Plestenjak/UOL
Leonor Lopes, professora-mediadora de conflitos de uma escola pública de São Paulo Imagem: Simon Plestenjak/UOL

Guilherme Azevedo

Do UOL, em São Paulo

11/11/2017 04h00

Leonor Lopes se posiciona mais uma manhã no limiar do portão de entrada da escola estadual João Solimeo, no Jardim Maristela, região da Vila Brasilândia, periferia pobre da zona norte de São Paulo. São 6h45. Emoldurada pelos muros pintados de preto recobertos de grafites multicoloridos, ela recebe e saúda os alunos.

"Olá!", "Bom-dia!", "Bem-vindos!", "Como está, Cairis?", "Tudo bem, Rayssa?", "Bom-dia, professora Luciana!", "Boa aula a todos!".

A saudação de boas-vindas é acompanhada de sorriso de dentes brancos e de gesticulação com as mãos firmes e compridas dessa mulher de compleição forte, de cabelo comprido e grisalho preso atrás num coque, óculos de grau de aro metálico retangular na face e hoje com 64 anos.

Os últimos seis anos ali como professora-mediadora de conflitos, função criada pelo governo do Estado de São Paulo no começo de 2010 como parte do Sistema de Proteção Escolar e instrumento contra a escalada da violência no interior das escolas públicas, tantas vezes entre alunos e outras tantas entre professores e alunos e às vezes também envolvendo os pais.

Assumiu a tarefa na escola praticamente por aclamação, por ser considerada, por colegas e alunos, a "Nossa Senhora das Causas Perdidas da Sala de Aula", como professora de língua portuguesa e inglesa, que lecionava. Depois da formação em mediação escolar e comunitária (80 horas de aulas em ambiente virtual de aprendizagem), começou, passando a se dedicar exclusivamente a isso.

Ouvir e dialogar

"Meu trabalho é promover o diálogo e a escuta, um mediador nunca pode perder essa capacidade de ouvir e dialogar. O tempo todo eu fico ouvindo os alunos. E não posso interferir diretamente no conflito, nem aconselhar [os envolvidos]. Não posso ser o juiz da questão. Meu trabalho é amenizar, fazer com que reflitam sobre o que ocorreu e com o tempo mudem", explica Leonor.

A propósito, a visão dela mesma sobre o conflito é particular: generosa e compreensiva, retira-o do campo negativo em que muitas vezes é segregado e ressalta sua função até pedagógica no desenvolvimento humano. "Não existe sociedade nem escola sem conflitos. Os conflitos acontecem o tempo inteiro, tudo acontece aqui, na escola. E são bons, porque fazem a gente cair e se levantar."

Leonor está sentada em uma das poltronas de couro escuro dispostas em círculo ao fundo da sua sala. O local é amplo e iluminado. Junto da porta de entrada, fixada à esquerda de quem entra, há uma lousa branca com os vestígios da atividade mais recente com os alunos, com a seguinte questão: "Estudar vale a pena?". As respostas mostram que o estudo vale muito para esses jovens, principalmente para garantir um futuro melhor.

À direita de quem entra está a mesa de Leonor, de fórmica clara, sobre a qual estão estojos de material escolar e os cadernos para registro das ocorrências da mediação. Como esta aqui, anotada em letra cursiva: "Sapato voador -- 6E -- I. [nome do aluno] -- intervalo -- O menino tirou o sapato pq. estava incomodando e o colega o jogou longe -- acertando a mediadora -- conversei com o aluno".

"Eu anoto tudo. Esse caderninho vai me levar um dia para o céu ou para o inferno", diverte-se, com um deles entre os dedos.

Leonor caderno - Simon Plestenjak/UOL - Simon Plestenjak/UOL
O registro das ocorrências de cada dia é feito a mão, no caderno
Imagem: Simon Plestenjak/UOL

'Respira, respira'

De certo modo, a sala da mediação é um refúgio e um respiro para a realidade escolar que regurgita ruidosa ali fora e pode entrar de supetão a qualquer momento. "Já vai lá tomar um cafezinho? Comer uma bolachinha?", conta a aluna Rayssa Vieira da França, 15, estudante do 1º ano do ensino médio, reproduzindo o que alguns professores falam para ela, com ironia, quando a garota procura ou é encaminhada para a mediação.

"Quando eles chegam nervosos aqui, eu peço primeiro que respirem: 'Respira, respira...'. Que se sentem, se acalmem. Alguns não querem falar a princípio, eu não forço. Daqui a pouco eles voltam e a gente conversa", exemplifica Leonor.

As rodas de conversa, bem aqui onde conversamos em círculo nesta manhã, são estratégias principais de buscar entendimento e compreensão. Leonor então provoca os alunos, no bom sentido: "Do que vocês gostam? Do que não gostam? Defina o que é família para você".

Distribui folha sulfite, lápis, canetinhas, recursos para que possam se expressar mais livre e precisamente, revelando o incômodo que sentem. "Sempre acabam falando, vão colocando tudo para fora."

Assim Leonor aprendeu que o aluno sempre entra acompanhado na escola, mesmo que entre sozinho. "Com cada um deles vêm sempre uns cinco junto." É que traz consigo para a sala de aula o pai, a mãe, a avó, a irmã, o irmão, o namorado, a namorada, todos os que por algum motivo sejam naquele momento motivo de preocupação, tristeza ou raiva.

Com cada um dos alunos vêm sempre uns cinco junto

Leonor Lopes, professora e mediadora de conflitos

A professora-mediadora relembra diálogo com uma das alunas durante atividade: "Falando de novo ao celular?". "É o meu pai." "Mas o seu pai não estava preso?" "Ele está me ligando da cadeia mesmo."

Ou este outro: "Como a senhora quer que me acalme se acabei de separar uma briga do meu pai e da minha mãe em casa, ele queria bater nela?".

Os problemas da sociedade também se manifestam e acontecem ali.

Rayssa - Simon Plestenjak/UOL - Simon Plestenjak/UOL
Rayssa, aluna do 1º ano do ensino médio: incentivo fez diferença
Imagem: Simon Plestenjak/UOL

"É muita pressão"

"Os adultos não nos entendem, ninguém nos entende. É muita pressão", desabafa Cairis Lopes, 15, colega de Rayssa no 1º ano do ensino médio. A garota, que não esconde a timidez e cora quando o repórter se dirige a ela, mora com a avó; a mãe, dependente de crack, só recentemente voltou a morar com elas, mas Cairis diz não conseguir chamá-la de mãe. Com o pai ela nunca teve contato. Aliás, na contabilidade de Leonor, 80% dos alunos dela têm pais separados.

Cairis conta ter melhorado seu desempenho escolar, incluindo o de comportamento, com o trabalho de mediação ao longo do ano. De aluna-problema, com histórico de conflitos com colegas e professor e desinteresse pelos conteúdos (odiava matemática!), diz que foi por aparente mágica a sua transformação.

Logo uma prova de matemática em que recebeu atenção dedicada da professora, acabou tirando nota 10. "Saí gritando pela escola toda de alegria", relembra, sorrindo. "Agora quero ser professora de matemática no futuro."

Para Rayssa, aconteceu algo similar: ela vivia se dizendo burra e a qualquer olhar meio atravessado de outra aluna já interpretava como ofensa. Hoje melhores amigas, houve tempo em que Rayssa e Cairis nem podiam se ver que queriam logo se agredir.

"A professora de matemática disse que eu podia, que eu era inteligente e capaz e eu comecei a acreditar e vi que era verdade", diz a menina.

Cairis - Simon Plestenjak/UOL - Simon Plestenjak/UOL
Aluna do 1º ano do ensino médio, Cairis comemora evolução
Imagem: Simon Plestenjak/UOL

"Tô grávida, e agora?"

Rayssa e colegas de mediação estão encenando agora uma peça de teatro que trata da gravidez na adolescência, que não é ficção no universo delas: "Tô Grávida, e Agora?". A dramaturgia é assinada por elas mesmas.

Rayssa faz o papel principal e assume um componente autobiográfico: a irmã mais velha engravidou precocemente e abandonou a escola. Não quer que aconteça o mesmo com ela.

Neste ano, na escola João Solimeo, quatro alunas engravidaram e precisaram se afastar do dia a dia, mesmo que temporariamente.

A professora de matemática Luciana Assis Rolim Jesus, 40, é testemunha e participante do problema. "Questões como essa, de gravidez, muitas vezes aparecem primeiro na sala de aula. 'Prô, tô grávida, o que eu faço?' Às vezes a gravidez é motivada por parente e a menina não sabe como, nem tem estrutura para contar para a família", frisa.

Aí é a própria professora que vai buscar o socorro da mediadora. "A gente decide em conjunto o que fazer com o caso, como ajudar, de que forma contar para a família. Sem a mediadora seria muito difícil. Aqui professor é psicólogo, ginecologista, tudo, mas a gente ama o que faz."

Luciana - Simon Plestenjak/UOL - Simon Plestenjak/UOL
A professora Luciana mantém relação de respeito e amizade
Imagem: Simon Plestenjak/UOL

Na mediação, é a vez de um garoto entrar esbaforido, nervoso, inquieto, suado, os olhos arregalados. Diz confusamente que outro aluno o está ameaçando de agressão por causa da queda e avaria da tela do telefone celular. Quer que o menino pague o conserto. Com algumas palavras e perguntas precisas, Leonor acalma o menino e mostra sua responsabilidade parcial no caso.

Logo mais chegará o outro e com ele será adotado o mesmo procedimento. "Lugar de celular é na mão, na sala de aula?" "Não, é na mochila." "Então..." Tudo é tratado de forma imediata, sem demora, porque o caso pode se agravar com velocidade. Na mediação de conflito é preciso senso agudo de urgência, explica Leonor.

Aqui professor é psicólogo, ginecologista, tudo, mas a gente ama o que faz

Luciana Assis Rolim Jesus, professora de matemática

O menino que ameaçava de agressão vive ao menos um problema grave: o padrasto morreu de "overdose" quando usava droga na laje da casa. Situações assim são comuns no dia a dia desses alunos que vivem nas cercanias da escola.

Leonor também faz as vezes de mãe ou avó. Os dois garotos em conflito vinham sujos para a escola, as roupas sempre encardidas. Leonor começou a levar as roupas deles para lavar na casa dela, entregando-as limpinhas, e hoje só andam arrumados.

Uma jovem chega agora reclamando que um menino a chamou de "cadela". Ele chega logo atrás e nega. Leonor diz que esse não é modo de tratar outra pessoa e pede que ele se desculpe. "Desculpa." E os dois partem refeitos para a brincadeira na quadra.

"É um povo que necessita de afeto", resume Leonor.

Ela tranca com chave a porta da sua sala e parte pouco depois das 12h35: é o fim de mais um dia de conflitos. Amanhã recomeça.

Leonor 2 - Simon Plestenjak/UOL - Simon Plestenjak/UOL
Termina mais um dia de trabalho na escola
Imagem: Simon Plestenjak/UOL

Mediação hoje é insuficiente, diz sindicato dos professores

A Secretaria da Educação do Estado de São Paulo informou que os vice-diretores de todas as 5.000 escolas estaduais de São Paulo serão treinados ainda neste ano para mediar conflitos. Outros 1.795 professores receberão formação também como mediadores. Hoje, na mediação de conflitos escolares no Estado, atuam 2.300 vice-diretores e 1.200 professores-mediadores. Com a medida, o governo diz que está reforçando o trabalho.

Conforme o plano do governo, os 1.795 professores formados em mediação atuarão em escolas mais violentas e situadas em áreas sociais mais vulneráveis. Nessas unidades, além do vice-diretor, haverá também um professor-mediador.

Ou visto por outro ângulo, mais de 3.000 escolas do Estado terão apenas um mediador de conflitos, que já ocupa um cargo na escola, como vice-diretor.

A situação hoje da mediação de conflitos na educação pública paulista, segundo a Apeoesp (Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo, com 180 mil associados), é de insuficiência. Não há escolas com mais de um professor-mediador. Nas unidades com programa Escola da Família, que abre à comunidade nos fins de semana, o gestor local é quem faz a mediação também durante a semana.

"A mediação é muito importante hoje no dia a dia violento das escolas e é uma tarefa que demanda profissionais o tempo todo. A mediação deveria estar cobrindo todos os períodos da escola [matutino, vespertino e noturno], mas hoje isso não ocorre", avalia a secretária de políticas sociais da Apeoesp, a professora e diretora escolar Rita Cardoso.

Escola - Simon Plestenjak/UOL - Simon Plestenjak/UOL
A entrada da escola estadual João Solimeo, periferia da zona norte de SP
Imagem: Simon Plestenjak/UOL

Encomendada pela Apeoesp, a pesquisa "Violência nas Escolas Estaduais de São Paulo", realizada em setembro último com professores, alunos, pais e a população em geral do Estado, mostrou que 39% dos alunos disseram já ter sofrido pessoalmente algum tipo de violência em suas escolas, número que sobe para 51% no caso dos professores. Em 2014, esses valores eram de 28% para alunos e 44% para professores, o que indica escalada na violência escolar.

Conforme o tipo de violência sofrida, o bullying (13%) e a agressão física (9%) lideraram entre os alunos. Para o professor, a agressão verbal foi a principal violência sofrida (44%).

"Debater o tema em sala de aula" foi a principal medida proposta pelos professores para diminuir a violência nas escolas. E aí entra a figura do mediador e a tarefa da mediação.