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Nº de alunos negros na universidade explode; entre docentes, alta é tímida

Professor da UFBA, Sérgio Ferreira avalia que a política de cotas em concursos ainda é muito recente - Arquivo pessoal
Professor da UFBA, Sérgio Ferreira avalia que a política de cotas em concursos ainda é muito recente Imagem: Arquivo pessoal

Ana Carla Bermúdez

Do UOL, em São Paulo

05/10/2020 04h00

A quantidade de alunos negros no ensino superior saltou quase 75% entre 2014 e 2018, mas a parcela de professores pretos ou pardos nesta etapa de ensino não cresceu no mesmo ritmo, apontam dados levantados pela plataforma Quero Bolsa a pedido do UOL, a partir dos resultados do Censo da Educação Superior.

No período, o número de docentes aumentou, mas apenas 8%. Para especialistas, a diferença está na incidência de ações afirmativas, mais abrangentes para alunos e ainda escassas na hora de contratar os profissionais para as salas de aula.

O país tinha 60.194 professores negros no ensino superior em 2014, o que representava 15,2% do total. O número subiu para 65.249 em 2018 —como houve ligeiro aumento em todo o corpo docente, o percentual de professores negros no ensino superior ficou em 16,4%.

Já entre os alunos matriculados no ensino superior, os estudantes negros somavam cerca de 1,7 milhão em 2014. Este número subiu para em torno de 3 milhões em 2018 —uma diferença de 74,6%. Em cinco anos, pretos e pardos passaram de 22,1% para 35,8% de todo o corpo discente.

Estado mais negro do país, a Bahia foi o estado que mais somou professores negros (1.951) e um dos que possui maior proporção de docentes pretos ou pardos no ensino superior: eram 36,5% em 2018.

Para Sérgio Ferreira, pró-reitor de ensino de pós-graduação da UFBA (Universidade Federal da Bahia), o número de professores negros tem aumentado "consideravelmente" na universidade nos últimos anos. Ainda assim, o ritmo deste crescimento é "um pouco mais lento" do que entre o número de estudantes negros.

Racismo no dia a dia, mas não no meio acadêmico

Professor do departamento de Química Analítica da UFBA desde os anos 80, Ferreira escalou todos os degraus dentro do mundo acadêmico. Ex-aluno de escola técnica, é bacharel e mestre em química também pela UFBA.

Além disso, tem doutorado na mesma área pela PUC-Rio (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro) e é pesquisador no CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico).

À medida que progredia na carreira, afirma, os colegas negros foram rareando. No doutorado, era o único entre os alunos. Nos comitês de avaliação da Capes e do CNPq, houve "situações em que olhava e contava os negros que tinha ali".

Ele diz, no entanto, que nunca passou por episódios de discriminação no meio acadêmico. Em interações cotidianas, por outro lado, a situação é diferente.

"Eu tenho problemas não como professor, mas se eu chego em um lugar para fazer uma compra, por exemplo. Entro em uma loja para comprar um carro, o cidadão chega para mim e fala 'olha, táxi é lá, do lado de lá'. Ou então eu fico olhando os carros e ninguém se aproxima para perguntar se quero comprar aquele carro. Isso eu sinto", conta.

Cotas

A diferença significativa entre as taxas de crescimento da presença de alunos e de professores negros no ensino superior ocorre porque há mais políticas afirmativas para os estudantes do que para os docentes, analisa Luiz Augusto Campos, sociólogo e professor de ciência política da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro).

Ele destaca a existência de programas como o Prouni (Programa Universidade para Todos), que oferece bolsas de estudo em instituições privadas de ensino superior e reserva parte das bolsas para autodeclarados pretos, pardos ou índios, e o Fies (Fundo de Financiamento Estudantil), que possibilita o financiamento de graduações em universidades e faculdades particulares e também possui critérios raciais.

"Temos políticas afirmativas [para alunos negros] em quase todo o ensino superior, mas, quando falamos de contratação, de mercado de trabalho privado e de concursos públicos, estamos falando de espaços em que as ações afirmativas não avançaram tanto", diz Campos.

A política de cotas para alunos em universidades foi oficializada em 2012. Já a obrigatoriedade de reserva de 20% das vagas oferecidas em concursos públicos federais para pessoas negras foi estabelecida em 2014.

No ensino superior público, as políticas afirmativas já fizeram de negros a maioria entre os estudantes. Segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), a marca foi atingida em 2018, quando estudantes pretos e pardos totalizaram 50,3% das matrículas.

Além disso, Campos explica que as cotas para negros nos concursos federais não estimulam nem garantem a permanência destes docentes na universidade. "A ação afirmativa opera só na entrada", diz.

Presença de docentes negros nos estados

Campos destaca, ainda, que a lei "deixa de fora" concursos estaduais e municipais. "Cabe a cada estado, a cada município regular."

Uma análise para a situação em cada estado mostra cenários desiguais. As maiores porcentagens de docentes negros são observadas no Acre (41,3%), Maranhão (42,5%) e Alagoas (38,7%) —além de Amapá, único estado em que essa porcentagem ultrapassou a metade em 2018, chegando a 55,6%.

Ainda assim, o índice está aquém da proporção de negros na população. Segundo o IBGE, pretos e pardos correspondem a 56,2%.

Por outro lado, as taxas de professores negros no Sul e Sudeste chegam a um décimo dos estados líderes —em São Paulo, por exemplo, o percentual é de 6,3%. Santa Catarina (2,9%) e Rio Grande do Sul (2,8%) têm as menores porcentagens.

O sociólogo avalia que há diferenças regionais "importantes" no modo como as pessoas se enxergam e, portanto, se consideram pretas ou pardas ou não. Ainda assim, ele defende que se pense de modo mais "agressivo" em incluir cotas não só para concursos públicos, mas também para seleções no mercado privado.

"É óbvio que há um avanço quando a gente fala de ações afirmativas para o ensino superior, mas elas não são a panaceia para o problema de discriminação no Brasil", afirma o sociólogo.

Uma possibilidade, aponta, é a realização de concursos ou seleções exclusivas para negros. "Do meu ponto de vista, se um departamento de uma universidade, um instituto federal ou qualquer instituição de ensino é 100% branco, aquele departamento tem que estar autorizado a fazer um concurso para preencher vagas só com negros", diz.

"Se a gente não fizer isso, as mudanças vão ser muito lentas ou acompanhadas de retrocessos —avança em um estado, mas não avança em outro".