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Em 16 anos, UnB vê presença de negro e indígena saltar de 4,3% para 48%

Processo de inscrição no primeiro vestibular da UnB com oferta de cotas raicias incluía fotografar os candidatos que concorriam dentro deste sistema; na imagem, a candidata Virginia dos Santos, em 2004. - Sergio Lima / Folha Imagem
Processo de inscrição no primeiro vestibular da UnB com oferta de cotas raicias incluía fotografar os candidatos que concorriam dentro deste sistema; na imagem, a candidata Virginia dos Santos, em 2004. Imagem: Sergio Lima / Folha Imagem

Amanda Wall

Colaboração para o UOL, de Brasília

12/07/2022 04h00

A UnB (Universidade de Brasília) agitou o debate nacional em 2003 ao se tornar a primeira instituição de ensino superior federal a implementar cotas étnico-raciais - reserva de vagas a estudantes negros (pretos e pardos) e indígenas. O feito custou à universidade manifestações contrárias dentro do campus, como pichações nos banheiros, e até no STF (Supremo Tribunal Federal), como o julgamento contestando a política afirmativa, mas que acabou com a corte reconhecendo a constitucionalidade da iniciativa. Quase 20 anos depois, a UnB colhe os frutos da política ao detectar que o número de alunos negros e indígenas saltou mais de dez vezes e agora representa quase metade do corpo estudantil.

No primeiro semestre de 2003 - antes da implementação das cotas raciais - negros e indígenas representavam 4,3% do total de alunos da universidade. Em 2019, data do último levantamento da instituição, esse grupo correspondia a 48% do total de estudantes (3.727 alunos pretos, 15.225 pardos e 203 indígenas). A mudança foi impulsionada pelas cotas já no primeiro vestibular: em 2004, os primeiros cotistas somaram 388 no total. Em 2022, passaram a ser 10.094 alunos.

Já dei aula para turmas em que todos os alunos eram brancos. Isso não existe mais"
Jorge de Carvalho, professor do Departamento de Antropologia

Caso Ari

A discussão sobre como reduzir os impactos do racismo na UnB ganhou força com o chamado Caso Ari. Hoje professor do programa de pós-graduação em Crítica Cultural da Uneb (Universidade do Estado da Bahia), Arivaldo de Lima Alves foi o primeiro negro a ingressar no doutorado em Antropologia da UnB. Ao fim do primeiro semestre do curso, em 1998, o estudante foi reprovado em uma das matérias obrigatórias.

Ele pediu revisão, mas a decisão foi mantida. Não era apenas o primeiro aluno negro a ser reprovado, mas a primeira reprovação em duas décadas de existência daquele programa. A falta de critério para colocar o desempenho de Arivaldo à prova foi questionada.

"Sem argumentos plausíveis que justificassem a reprovação, o que ficou para as comissões era que se tratava de um caso de racismo e homofobia, considerando que o aluno também era homossexual", recorda Nelson Inocencio, professor do Departamento de Artes Visuais e membro do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da UnB. Levado ao Cepe (Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão), o caso foi concluído em maio de 2000, quando os conselheiros aprovaram, por 22 votos a 5, a revisão da menção concedida inicialmente a Ari.

Esse episódio impactou diretamente a implementação de políticas afirmativas na UnB. Em 6 de junho de 2003, o Cepe aprovou o Plano de Metas para a Integração Social, Étnica e Racial da Universidade de Brasília, que reservava a estudantes negros 20% das vagas do vestibular para todos os cursos oferecidos pela instituição.

Os 10 anos da Lei de Cotas no Brasil

O documento foi elaborado por uma dupla de antropólogos. Professor titular da UnB, José Jorge de Carvalho era orientador de Ari no doutorado e hoje coordena o Instituto de Inclusão no Ensino Superior e na Pesquisa. Docente na universidade por mais de 30 anos, Rita Laura Segato é premiada internacionalmente por trabalhos sobre violência contra mulheres, principalmente indígenas.

Para além das cotas para negros, o texto previa a reserva de até 20 vagas para a população indígena, de um total de 3.900 ofertadas anualmente pela universidade. Naquele ano, a UnB se tornava a primeira universidade federal a adotar política de cotas raciais no Brasil. "As cotas [na UnB] colocaram em pauta a existência do racismo na sociedade e na academia", lembra Rita.

O vestibular que marcou o início da reserva de cotas aconteceu no segundo semestre de 2004. À época, para concorrer a uma vaga pelo sistema, o candidato precisava preencher a ficha de inscrição e entregá-la em um posto de homologação, onde era fotografado e a imagem encaminhada para análise da banca avaliadora. Em 2008, a UnB passou a prever entrevista presencial para minimizar a incidência de fraudes. A avaliação é conduzida por uma comissão formada por docentes e servidores.

Thaís Rodrigues, 32 anos, foi aprovada em dois processos seletivos na UnB pelo sistema de cotas: em 2009, passou no vestibular para biologia e, em 2013, para comunicação social. Em sua entrevista na banca de heteroidentificação, foi questionada sobre sua origem e se já havia sofrido racismo. "Eu era uma forte defensora das cotas na época em que fiz o vestibular, e fui convencendo outros amigos a fazerem. Havia muita resistência das pessoas a usarem as cotas", lembra.

Resistência e repercussões

Mesmo aprovadas pela maioria dos conselheiros do Cepe, as cotas raciais enfrentaram resistência dentro e fora da UnB. Vozes contrárias se ergueram sob argumentos de que não existia racismo no Brasil, que as cotas rebaixariam o nível acadêmico das universidades ou ainda que o problema não era o vestibular, mas a péssima qualidade da educação pública do país.

Claro que há inimigos - e sempre haverá - porque não se trata de uma cota para 13% ou 15% da população, como foi nos Estados Unidos. Trata-se de cota para mais da metade da sociedade brasileira"
Rita Segato, antropóloga e ex-professora da UnB

Dentro da UnB, a resistência não ficou restrita a conselheiros ou docentes. "Encontrávamos pichações pedindo morte aos cotistas nos banheiros. Havia hostilidade no cotidiano. O primeiro semestre foi bem reativo", recorda cientista social Angelo Roger da França Costa, ex-aluno cotista e mestrando da UnB em políticas sociais.

Manifestos contrários às cotas foram entregues em 2006 - aos então presidentes da Câmara, Aldo Rebelo, e do Senado, Renan Calheiros - e em 2008 a Gilmar Mendes, à época presidente do STF. Sob argumentos de que o sistema de cotas tem caráter racista, fere o princípio da igualdade e que geneticamente não existem raças humanas, os textos foram assinados por personalidades como o cantor Caetano Veloso, o poeta Ferreira Gullar e o sociólogo Demétrio Magnoli.

Cotistas negros da Uerj

Em 2009, o partido Democratas entrou com ação no STF pedindo a declaração de inconstitucionalidade do critério racial para ingresso na universidade. "Não há clareza e objetividade na análise em relação aos pardos", argumenta a advogada e hoje procuradora do Distrito Federal Roberta Fragoso, responsável pela elaboração do texto.

Utilizando critérios como renda mínima familiar e haver estudado em escola pública, necessariamente será feita a integração de 80% dos negros no país porque 80% dos pobres são negros. Assim, seria possível fazer a integração do negro na universidade, no mercado de trabalho, nos concursos públicos sem correr riscos de criar injustiças em relação aos pardos e sem correr o risco de haver tribunais raciais"
Roberta Fragoso, advogada e procuradora do DF

As manifestações contrárias, no entanto, não convenceram o STF. Em 2012, por unanimidade - foram 12 votos favoráveis - a Corte determinou a constitucionalidade das ações afirmativas da UnB.

No mesmo ano, após o julgamento no Supremo, o Congresso aprovou a legislação conhecida como Lei de Cotas (nº 12.711), que reserva metade das matrículas de graduação em universidades e institutos federais a alunos de escolas públicas e também beneficia pessoas negras, indígenas e com deficiência.

Assistência estudantil

A partir de 2021, a política de cotas foi estendida para os cursos de pós-graduação, e os editais de mestrado e doutorado passaram a direcionar 20% de vagas a candidatos negros e indígenas. Naquele ano, 303 alunos ingressaram nos programas de pós-graduação por meio desta política, aponta o Decanato de Pós-Graduação da UnB. Esses alunos correspondem a 10,3% de todos os 2.941 estudantes ingressantes do ano.

Para Ileno Izídio, decano de assuntos acadêmicos da UnB, um dos desafios é promover o acesso também na seleção de servidores. "Ainda temos um número pequeno de professores negros na universidade. No Departamento de Psicologia, eu e outro colega somos os únicos professores negros", afirma. Hoje, dos quase 2.622 professores da universidade, 81 são pretos, 425 são pardos e 8 são indígenas - o que equivale a 19% do total.

O outro é garantir a permanência dos cotistas. Para contornar o problema, a UnB criou a Política de Assistência Estudantil, que permite aos estudantes receber auxílios socioeconômicos, de moradia, transporte, creche e alimentação. Atualmente, 5.837 alunos são atendidos pela iniciativa. Esses estudantes também acessam o restaurante universitário de graça. No total, 11 mil alunos utilizam o serviço de alimentação gratuita da UnB.

"Apesar de atendermos a 2.800 estudantes com o auxílio socioeconômico, existe uma demanda reprimida. O atendimento ao longo de toda a graduação, com a bolsa permanência do começo ao fim do curso, não contempla todos os estudantes que precisam", afirma a diretora de Desenvolvimento Social da UnB, Eloisa Pereira Barroso.

O último edital, por exemplo, recebeu 2 mil inscrições, mas houve apenas cerca de 500 auxílios. Isso é resultado dos cortes no orçamento, diz a diretora. A verba do Pnaes (Programa Nacional de Assistência Estudantil), do Ministério da Educação, teve uma recomposição nominal, mas, como foi reduzida em 2020 e 2021, apenas voltou aos patamares de 2019, conta ela.

A saída encontrada pela universidade, conta Eloísa, é usar recursos próprios para garantir algumas políticas, como a gratuidade no restaurante. "A UnB entende que a política de acesso e permanência exige da instituição uma posição de prioridade. Para muitos dos alunos em vulnerabilidade, as refeições no restaurante universitário são a única possibilidade de alimentação".