Sozinha na sala: ela é a única aluna no curso de uma universidade pública

Esqueça os trabalhos em dupla e grupos de WhatsApp: Isadora Rezende, 21, é a única aluna em sua sala na universidade.

A história da "solidão" da universitária ganhou fama no TikTok, quando ela compartilhou sua rotina sem ter colegas de curso, passando pelas aulas —teóricas ou práticas— acompanhada apenas dos professores da Universidade Federal de Lavras (Ufla), em Minas Gerais.

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Isadora explicou ao UOL que estuda em um campus secundário da universidade, na cidade de São Sebastião do Paraíso, também no sul de Minas.

Lá, o primeiro —e único— curso oferecido é um bacharelado em inovação que dura 3 anos e pode ser estendido para que o estudante saia também com um diploma de engenharia. As aulas começaram em 2022. Na turma da estudante (a primeira a ingressar), apenas 12 de 90 vagas foram preenchidas, segundo ela.

A já pequena lista de alunos continuou a reduzir quando cinco dos 12 deixaram o curso.

Além disso, Isadora e os colegas tiveram de decidir quais seriam suas especialidades dentro da área: engenharia de software, elétrica ou de produção.

O curso é um pouco diferente, dividido em duas etapas. A primeira é o BICT (Bacharelado Interdisciplinar em Inovação, Ciência e Tecnologia), uma base da engenharia, temos aulas juntos. Mas a segunda é a engenharia que o aluno quer fazer e, da minha turma, eu era a única que queria produção. Então, eu sabia que em algum momento, eu ficaria sozinha.
Isadora Rezende

Os seis colegas de Isadora seguiram com a ideia de estudar software, o que a deixou ainda mais "isolada". Em teoria, a solidão da estudante começaria após os três primeiros anos, quando ela se formaria no BICT. Mas, na prática, alguns de seus colegas acabaram atrasando algumas matérias obrigatórias.

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Isadora, então, passou a pegar matérias eletivas ligadas à engenharia de produção, sendo a única a fazer essa escolha —outros colegas que optaram pelo curso estão ao menos seis meses atrasados.

Apesar da solidão em sala, ela diz que consegue se conectar com outros alunos em atividades extraclasse e se dedica a divulgar o nome do campus onde estuda.

Por ser um campus em construção, muitas pessoas desconhecem. As pessoas estão começando a conhecer agora, então sempre teve vagas ociosas. E é isso que eu mostro nas redes sociais. Falando: 'gente, está fácil de entrar. Vamos entrar, vamos aproveitar a oportunidade'. E a gente está conseguindo isso.
Isadora Rezende

'Para faltar ou ir ao banheiro, tenho de avisar o professor'

A estudante tem algumas aulas adaptadas pela falta de outros alunos
A estudante tem algumas aulas adaptadas pela falta de outros alunos Imagem: Arquivo Pessoal

Ao falar sobre as diferenças entre ter uma sala cheia de alunos e ser "filha única" na engenharia, Isadora consegue listar prós e contras.

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Ela elogia o fato de que tem acesso exclusivo a professores que são referência na área que estuda —e destaca que tem docentes que sempre trabalharam na área acadêmica e outros que eram do mundo corporativo, o que a ajuda a conhecer o mercado de trabalho mesmo sem ter colegas para conversar.

Aproveito a parte de ser a única aluna para conseguir compreender melhor o que eles fazem. Tem professores que trabalharam como consultores, trabalharam em indústrias, em empresas, e outros que foram, basicamente, só professores universitários. Então, eu consigo ter uma noção de cada um. E aí eu ando com os meus próprios objetivos.
Isadora Rezende

Por outro lado, ela admite: muitos dos exercícios em sala têm de ser adaptados pela falta de colegas para dividir as tarefas.

Além disso, a independência que muitos imaginam na universidade, com professores que não controlam as idas do aluno ao banheiro ou a presença na sala de aula, não se aplica a Isadora.

Alguns trabalhos têm adaptação, o professor me mostra como seria o exercício da forma que ele foi pensado, para uma sala com mais gente, e eu faço uma versão adaptada. Além disso, tem aquilo de você ter de avisar tudo o que vai fazer. Por exemplo, para ir ao banheiro, tem de pedir autorização. Ou, se eu vou faltar, sempre tenho de avisar com antecedência, até para não deixar o professor perder tempo indo para uma aula sem ninguém.
Isadora Rezende

A universitária garante que não tem regalias quando o assunto é avaliação e frequência.

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Isadora tem ao menos mais dois anos sozinha na universidade
Isadora tem ao menos mais dois anos sozinha na universidade Imagem: Arquivo Pessoal

As aulas têm duração normal, a mesma que teria com 30 alunos na sala. E é bem fácil me comunicar caso eu precise faltar ou caso o professor precise faltar, mas raramente eu tenho falta, a gente só remarca a aula para outro horário.
Isadora Rezende

Agora, depois de terminar o bacharelado, Isadora apresentou seu primeiro trabalho de conclusão de curso. Aprovada, ela vai seguir para a especialização em engenharia de produção, onde deve passar mais dois anos sozinha.

Há ainda alguns pontos em aberto em sua formação "solitária". Por exemplo: como será sua primeira colação de grau, já que não tem outros colegas para dividir a cerimônia?

É um mistério pra gente, porque a sede fica em Lavras. A gente não entende das estruturas, das formações deles, mas a própria cerimonialista entrou em contato diretamente pelo WhatsApp e parece que vou ser só eu [na colação]. Eu vou ser a oradora, fazer o juramento, tudo sozinha. Não deve durar nem 15 minutos, né?
Isadora Rezende

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O que diz a universidade

O UOL procurou a Ufla e o Ministério da Educação (MEC) para entender por que o curso atraiu tão poucos alunos e como a universidade pretende aproveitar melhor a estrutura e os recursos no novo campus.

Por meio de nota, a Ufla afirmou que Isadora, além das aulas, também participa de projetos e núcleos de pesquisa.

Ela não está sozinha, embora tenha sido a única da turma que tenha feito a opção pela engenharia de produção.
Ufla, em nota

A Ufla diz que o aprendizado "tem sido adaptado para uma abordagem multidisciplinar, com interação com outras turmas". Em relação à colação de grau, a universidade diz que Isadora participará da cerimônia individualmente.

E por que tem um campus lá?

Segundo a Ufla, a escolha de São Sebastião do Paraíso como sede do novo campus seguiu critérios estratégicos, sobretudo pela localização geográfica. A cidade tem 71 mil habitantes.

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A região foi escolhida por apresentar características semelhantes às de Lavras, com forte presença da cafeicultura e da pecuária, e por estar em um raio de 150 km sem a presença de um campus de uma universidade federal.O foco foi a oferta de cursos voltados à inovação e ao empreendedorismo, considerando a proximidade com o eixo econômico de São Paulo, incluindo cidades como Franca, Ribeirão Preto e Sertãozinho, que já abrigam indústrias e empresas de tecnologia e têm potencial para ampliar esse setor.
Ufla, em nota

Já o MEC informou que a criação do campus foi um projeto elaborado pelo ministério, a Ufla, a comunidade acadêmica, o município e seu entorno.

A instituição [Ufla] possui autonomia conferida pela Constituição Federal de 1988 para, entre outros pontos, decidir sobre suas prioridades institucionais na oferta de novos cursos em seus campi, respeitado o devido processo regulatório.
MEC, em nota

A pasta diz, ainda, que o Programa de Aceleração do Crescimento (Novo PAC) prevê a criação de 10 novos campi de universidades federais, seguindo critérios como vazios regionais, demandas das universidades e da sociedade.

Alunos x professores

Atualmente, segundo a universidade, o campus tem 124 alunos matriculados no curso de BICT, que oferece 180 vagas por ano, distribuídas em duas entradas semestrais. Os estudantes podem entrar por meio do Sistema de Seleção Unificado (Sisu), que considera a nota do Enem, e por um processo seletivo próprio.

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No total, são 29 professores no campus de São Sebastião do Paraíso —todos doutores, com dedicação exclusiva ao campus. Eles atuam no BICT e também nas engenharias (segundo ciclo).

Por que tem poucos alunos?

A Ufla reconhece dificuldades para atrair estudantes. Segundo a universidade, o formato do BICT e a forma como aparece no Sisu "foi um desafio logo no momento inicial da implantação do campus".

Como os cursos específicos de engenharia não aparecem diretamente como escolha no Sisu, torna-se fundamental uma comunicação mais ampla sobre as possibilidades do modelo interdisciplinar, ainda um modelo em crescimento no Brasil. Além disso, o período pós-pandemia trouxe mudanças no comportamento dos jovens em relação ao ensino superior.
Ufla, em nota

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