Geometria e estética - Experiências com o jogo de xadrez

Xadrez e matemática: virando o jogo

Maria Ângela de Camargo

Como dar uma aula de Matemática que não se pareça com a Matemática que conhecemos? E como fazer dessa prática um curso completo, com elementos de álgebra e geometria, estética e filosofia, que transforme as dificuldades em oportunidades de aprendizado, um aprendizado que seja belo e prazeroso, e que acima de tudo agregue significado para a vida além da escola?

Geometria e estética - Experiências com o jogo de xadrez, de Antonio Rodrigues Neto (Editora da Unesp), é o relato da experiência do autor - ao decidir trocar o conteúdo tradicional de um curso de Matemática por um projeto de ensino de xadrez -, transformado em dissertação de mestrado na área de Educação, na Universidade de São Paulo (USP). É um livro sobre os desafios de um professor ensinando a fazer; e as aventuras de alunos aprendendo a fazer.

O autor relata a experiência que começou em 1988, como professor de ensino fundamental em uma escola da rede pública, quebrando o paradigma de que a Matemática é uma coisa difícil e um conjunto de regras imutáveis. Ele procurou um meio de inspirar alunos desmotivados, utilizando o jogo de xadrez como ferramenta de ensino. O primeiro empecilho, a ausência de tabuleiro e peças de xadrez na escola, apresentou-se como uma oportunidade de virar o jogo da Matemática. Rodrigues sugeriu que eles próprios elaborassem as peças do jogo e os tabuleiros. A partir daquele momento, o jogo tornou-se um instrumento de investigação.

Essa tarefa provocou mudanças profundas na maneira como aqueles meninos e meninas do ensino fundamental viam a disciplina e sua frieza entronada. Mas para que isso acontecesse foi preciso elaborar um currículo em que houvesse espaço para o jogo, um currículo diferente da maneira como era habitualmente elaborado, bem como modificar o formato das aulas.

Vencer resistências

Um recurso é um instrumento para alcançar um determinado objetivo. No caso da educação, o objetivo é implementar a dinâmica do ensino-aprendizado; e sob este ponto de vista, o jogo pode ser visto como um recurso para o ensino e a aprendizagem de Matemática, citado em linhas gerais no texto dos Parâmetros Curriculares Nacionais. Uma vez que o professor vença a resistência à adoção desse tipo de recurso (porque o jogo não parece tão matemático quanto uma lista de exercícios, por exemplo), ele deve garantir a existência de algumas circunstâncias.

Em primeiro lugar, escolher um currículo. Elaborar um bom currículo significa escolher ou recortar, dentro do conteúdo e em tempo adequado, itens que sejam significativos e apresentem possibilidades de conexões com outros conteúdos, dentro da própria Matemática e fora dela (o que ensinar); focalizar o que se quer desenvolver, verificar as conexões com as ciências e as artes, e assegurar que este recorte vai ao encontro das necessidades dos alunos e de sua comunidade (para quem e para quê ensinar).

Deve haver interdependência entre conceitos, deve ser possível atacar vários conceitos simultaneamente: essa proposta é uma alternativa à estrutura linear de aquisição de conhecimentos, hierarquizada, de pré-requisitos (porque é assim que os conteúdos aparecem na maioria dos livros didáticos). Conceitos interligados dessa maneira adquirem outra profundidade. O currículo deve ser um meio de se introduzir hábitos e valores, além do conhecimento. O professor ensina a saber fazer, o aluno aprende a saber fazer.

Dentro do currículo escolhido, deverá haver espaço cuidadosamente planejado para o jogo. Adotar um jogo como recurso não é uma decisão simples, porque modifica radicalmente a maneira de dar as aulas, a maneira como os alunos adquirem conhecimento e de como o professor vai controlar a eficácia e a qualidade dessa aquisição. Envolve também encontrar um bom jogo, de azar, de lógica ou de estratégia, porque nem todos os jogos são adequados para essa finalidade.

Sobre isso, o autor afirma que cada jogo que se pretende utilizar deve ser estudado: o que podemos explorar desse jogo para a aprendizagem de Matemática? "O que", de Matemática, pode ser ensinado com ele? Que tipo de problema propõe? Que conceitos ele envolve? As regras ou movimentos são importantes para aprender Matemática? Possibilita interações? As respostas a essas perguntas vão indicar encaminhamentos possíveis.

Proposto o jogo e declaradas as suas regras, os alunos poderão analisar e descrever possibilidades, decidir qual é a melhor jogada, acompanhar o desenvolvimento de todos os colegas e trocar pontos de vista com eles; deverão também defender seus pontos de vista, sugerir alteração nas regras ou mesmo investigar como essas regras foram sendo alteradas com o tempo.

Construir, alterar ou mesmo romper algumas das regras de um jogo pode ser muito produtivo, se o professor mostrar que isso acontece o tempo todo em nossas atividades cotidianas - e também na Matemática, porque há uma tendência de se entender as regras e conceitos da Matemática como imutáveis (por que zero é número natural? Zero é par?). Saber jogar pressupõe saber as regras do jogo e articulá-las adequadamente. Não é assim também na Matemática? E na vida, fora da escola, também não é assim? 

Nesse ambiente, é natural que apareçam dificuldades, impasses, crises. É na confrontação de soluções, na reelaboração e ampliação, que se operam desenvolvimentos, oportunidades para se valorizar a observação e a investigação, a capacidade de raciocínio e aplicação de outros saberes, em detrimento da memorização e aplicação de fórmulas sem contexto.

O trabalho

Começando pela declaração do movimento de algumas peças em um tabuleiro pronto, pode-se investigar algumas jogadas. O movimento das peças e seus possíveis caminhos são linguagem e intenção. As trajetórias das peças, discriminadas por cores e simetrias, produzem formas geométricas harmoniosas; explora-se por aí a estética do movimento.

Todas as séries podem ser envolvidas em conteúdos adequados. Pode-se fazer com que séries distintas trabalhem juntas. Desde a descrição dos caminhos, exploram-se conceitos como retas, figuras planas e regiões. Dada uma peça em uma determinada posição do tabuleiro, quais são as casas ameaçadas? Dada uma configuração de peças, é possível perguntar: que figura é esta? Uma peça dentro desta região pode ser atacada ou não? Qual é a regra?

A elaboração do tabuleiro traz o conhecimento adquirido nas malhas quadriculadas das primeiras séries, e avança para perímetros e áreas.

Para explorar as peças, inicialmente em cartões ou botões, as formas tridimensionais foram investigadas modelando-se as peças em massinha; passou-se, posteriormente, a elaborar planos de construção em cartão; os planos evoluíram para imagens em perspectiva. Dobraduras também foram utilizadas - e aí se exploram com tranqüilidade os conceitos de ângulos, triângulos e quadriláteros, em geometria plana.

Pode-se explorar a evolução de um conceito, desde o tabuleiro simplificado de Thomas Dawson, de 3 linhas e várias colunas, com regras simplificadas, até o modelo de 8 x 8. A geometria analítica está presente na nomeação de casas e pontos, na planificação de figuras tridimensionais.

Um rei na fita de Moebius

É claro que o caos aparente de produção de conhecimento tem a mão firme do educador, que a todo momento está com um olho na classe e outro olho no currículo. Momentos de experimentação, acerto e erro, avanços e retrocessos, reflexão, reelaboração, ampliação e generalização precisam ser organizados para uma apropriação efetiva de conhecimentos.

Além do conhecimento imediato, o professor - que a esta altura é alguém que de repente aprende também - sugere e mostra outras possibilidades, como tabuleiros cilíndricos, esféricos, outras geometrias possíveis além da euclidiana e impactos em outras áreas do conhecimento. Se já conhecemos as casas ameaçadas pelo rei no tabuleiro plano, quais casas ele ameaçaria se estivesse andando sobre uma fita de Moebius?

Enquanto exploram formas tridimensionais, os alunos conhecem as características de prismas, cilindros, pirâmides, cones e sólidos de revolução, ao mesmo tempo em que estudam a evolução histórica das peças.

Bons problemas

Nunca se poderia imaginar um trabalho desse tamanho sem um acordo entre alunos e o professor. Ao contrário de currículos lineares, impostos de cima para baixo, houve aqui a oportunidade de construção conjunta, impregnada de desafio e sedução da beleza, o que, certamente, aumentou a auto-estima dos participantes e estreitou laços afetivos. Foi um bom problema de Matemática.

E um bom problema de Matemática permite que o aluno compreenda e sinta o desafio de resolvê-lo como uma experiência extremamente positiva. Ele percebe que tem ferramentas para atacá-lo, não unicamente por meio da aplicação de regras e conceitos da disciplina, mas ao se sentir desafiado pelo estímulo à imaginação, fazendo conexões com outras áreas, produzindo novas formas de resolução e conhecimento para outras áreas, transformando o aparente azedume da disciplina em uma saborosa aventura para a escola e para a vida. De um limão, fazer uma verdadeira limonada.

Foi o que aconteceu com os alunos - de muita sorte - do professor Antonio Rodrigues Neto, que deve ter sido, para essas crianças, um professor inesquecível. Geometria e estética - Experiências com o jogo de xadrez é, portanto, leitura obrigatória para todos os que são apaixonados pela educação.
 

Geometria e estética - Experiências com o jogo de xadrez

Antonio Rodrigues Neto

Editora da Unesp

220 págs.
 

Fonte: é pesquisadora em Educação Matemática e professora do Colégio Ítaca.

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