História e romance policial
O crime do restaurante chinês - Carnaval, futebol e justiça na São Paulo dos anos 30 Dida Bessana
Essa chacina, como os jornais da época registraram, é o tema de "O crime do restaurante chinês", de Boris Fausto, professor aposentado do departamento de Ciências Sociais da USP, membro da Academia Brasileira de Ciências e autor de, entre outros, "A revolução de 1930", "A crise dos anos vinte e a Revolução de 1930", "Getúlio Vargas, o poder e o sorriso", "Negócios e ócios" e "Imigração e política em São Paulo".
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Os lixeiros ainda recolhiam serpentinas emaranhadas, cacos de vidros de lança-perfumes, garrafas de cerveja e restos de fantasias nas ruas de São Paulo. O cozinheiro lituano Pedro Adukas chegou ao número 13 da rua Wenceslau Brás, perto da praça da Sé, por volta das 6h45 da manhã de 2 de março de 1938, uma Quarta-Feira de Cinzas. Pouco depois do portão de entrada, encontrou o corpo de dois homens com o rosto desfigurado; mais adiante o corpo de seu patrão Ho-Fung e logo em seguida o da esposa dele, Maria Akau.
Se em "Crime e Cotidiano", de 1984, o autor fazia uma análise da criminalidade em São Paulo, no período compreendido entre 1880 e 1924, demonstrando como viver de acordo com determinados papéis esperados pela sociedade, ou ser caracterizado por eles, podia significar a absolvição ou a condenação, e como o sistema policial e judicial aglutinava os mais distintos níveis da vida social, neste livro ele destaca um episódio e o destrincha sob a ótica da micro-história.
Surgida em meados da década de 1970, com os italianos Carlo Ginzburg ("O queijo e os vermes") e Giovanni Levi ("A herança imaterial. Trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVII. Rio de Janeiro"), e com o francês Le Roy Ladurie ("História dos camponeses franceses"), a micro-história se caracteriza por reduzir a escala de observação do historiador, concentrando-a em pessoas comuns, e não em grandes personagens, para extrair de fatos aparentemente banais uma dimensão sociocultural relevante, como o próprio autor afirma na Introdução. Já o recurso à narrativa, e não às grandes estruturas, permitiu ao autor uma escrita que em muito se assemelha à do romance policial, gênero do qual Boris Fausto admite ser um apreciador, e até da linguagem cinematográfica.
Desse modo, o olhar do pesquisador parte de um episódio e se estende a todos os seus desdobramentos, tais como o funcionamento do aparelho policial e judiciário, o racismo, o debate sobre a natureza da criminalidade e, em especial, o Carnaval e a copa do Mundo na França.
Assim, depois de encontrados os corpos e periciada a cena do crime, intensa investigação policial chega a um suspeito: um ex-funcionário do próprio restaurante. Jovem, negro, corpulento, recém-chegado de Franca, interior de São Paulo, Arias de Oliveira é preso e em pouco tempo formalmente acusado. O caso repercute. A opinião pública, bem informada pelo rádio e pelos jornais, acompanha-o com interesse crescente. Compositores, como Moreira da Silva e José Figueira , fazem deste acontecimento o mote para um samba de breque que conta a história de um malandro, frequentador de um restaurante chinês, que luta com o proprietário da casa, ao passo que os Irmãos Laureano tratam do assunto em uma moda de viola.
Portanto, para além do crime em si, o que Boris Fausto nos mostra é a sociedade paulistana em múltiplas feições: o papel da imprensa que imediatamente culpabiliza Arias; uma investigação que recorre aos estudos frenológicos, então na moda, tomando-os por científicos e objetivos; uma opinião pública oscilante - primeiro expressa seu racismo, condenando, mas em pouco tempo passa a simpatizar com o acusado; um suspeito forçado a confessar, mas que em seguida é isentado de culpa; e, por último, o papel de Leônidas da Silva, o negro "diamante", que redime o futebol brasileiro na Copa de 1938, de certo modo preparando o terreno para os aplausos que Paulo Lauro (advogado de defesa e também mulato) recebe ao deixar o tribunal depois de seu cliente ser absolvido pela segunda vez.
O crime do restaurante chinês - Carnaval, futebol e justiça na São Paulo dos anos 30
Boris Fausto
Companhia das Letras
246 páginas
é jornalista e editora da Página 3 Pedagogia & Comunicação.