Os leitores de Machado de Assis

Como leram Machado de Assis em sua época?

Valentim Facioli

Depois de um século da sua morte (1908) e reconhecido ele como o maior escritor brasileiro, seria de supor que toda a população alfabetizada do país (ao menos os que são capazes de ler livros) é sua leitora potencial. Alguns milhões, bastante gente, mas, talvez na realidade, muito menos do que ele merece e de fato acontece.

O tamanho atual bastante ampliado do aparelho escolar, das bibliotecas, do parque editorial, das edições de seus livros e o reconhecimento da importância e permanência de sua obra, tudo isso, e algo mais, indicam uma glória construída (com merecimento), mas ainda não garantem leitura e, menos ainda, boa e conseqüente leitura.

A crítica literária estuda sem descanso as variadas obras de Machado. Não há unanimidade na busca de sentido, dividindo-se em diversas correntes, uns contestando outros e trazendo contribuições que fazem aumentar a necessidade de mais estudos e mais interpretações.

Quanto aos leitores que lêem mas não escrevem e nem comentam a respeito do que leram, parece impossível saber como entendem e que sentido atribuem aos romances, contos e crônicas. Tratando-se de obras fundadas na ironia, quando o que está na superfície quer dizer outra coisa, nunca sabemos se os leitores estão aparelhados para as decifrações necessárias.

Está aí um paradoxo, talvez não superável, que tem a ver com a sociedade moderna e seu mercado e nele a função e prestígio da literatura. Tem a ver também com certos imponderáveis como o gosto do leitor, por literatura, por literatura do passado e pela forma literária irônica machadiana.

Na passagem do século 19 para o 20, apenas 18% da população brasileira seriam alfabetizados. E capazes de ler livros seriam 2% desses 18%. Então: para quem Machado de Assis escrevia, e quem seriam de fato seus leitores?

A pesquisa levada a cabo por Hélio de Seixas Guimarães, cujos resultados estão nesse volume, enfrenta essas questões. Trata-se do mais completo trabalho já realizado no Brasil, por conta de buscar as respostas àquelas perguntas, sem embargo de outras pesquisas, de menor porte, de diferentes autores, terem também procurado as mesmas respostas.

E vemos que desde as primeiras manifestações jornalísticas sobre a obra machadiana, instalou-se uma enorme diversidade de opiniões, divergências de todo tipo, firmando a evidência da impossibilidade de determinar um sentido único para certo romance, ou conto, ou poema ou crônica do grande escritor. Esse quadro está restaurado na pesquisa e exposto no livro de Hélio Guimarães. Isso demonstra que os leitores contemporâneos do escritor tiveram que procurar alternativas e ao mesmo tempo deixaram marcadas as dificuldades que a crítica e os leitores em geral encontram para ler um grande escritor.

A relevância da pesquisa e seus resultados é evidente em si mesma, quando observamos também a quase obsessão (irônica, humorística e verdadeira ao mesmo tempo) dos narradores machadianos por dialogar permanentemente com imaginários leitores e leitoras. Essa obsessão pode parecer cacoete a alguém menos atento. Mas não é. Porque esse diálogo proposto e buscado pelos narradores machadianos tem função formativa, no sentido forte de que é constitutivo da forma da escrita e também trava um combate com a inteligência do leitor empírico. Esse combate implica que o texto machadiano exige a formação de um novo leitor, capaz de permanente vigilância e inteligência, capaz de decifrar a expressão astuta da ironia e das entrelinhas, e, portanto, capaz de colaborar no modo de produção de sentido.

Mas o pesquisador não se ateve a demonstrar o que os contemporâneos de Machado escreveram sobre ele. Fez isso e fez muito mais: tratou de estudar com cuidado e sensibilidade os narradores dos romances machadianos, oferecendo uma contribuição rica e sugestiva para debater com os leitores inúmeros problemas da representação literária e da problemática posição dos narradores nos contextos de seus lugares de fala. Com isso problematizando os modos de produção de sentido. O leitor atual está, portanto, bem suprido do que foram as manifestações contemporâneas de Machado e do que se pode esperar de um leitor atento, astuto e inteligente, que hoje em dia lê Machado.

Assim, esse trabalho de Hélio de Seixas Guimarães é uma contribuição decisiva para que o leitor atual de Machado de Assis possa saber o que os contemporâneos do escritor faziam com seus escritos. Para o mal e para o bem. Os grandes e originais trabalhos de pesquisa de fontes, como esse livro notável, alteram o patamar de conhecimento e compreensão da melhor literatura e permitem compreender como um escritor diz muito do ser humano e de nossas condições de vida.

 

Os leitores de Machado de Assis

O romance machadiano e o público de literatura no século 19

Hélio de Seixas Guimarães

Prêmio Jabuti 2005 da Câmara Brasileira do Livro

Nankin Editorial / Edusp

512 págs.

Fonte: é professor aposentado de Literatura Brasileira na USP. Orienta mestrado e doutorado. Autor de Um defunto estrambótico - análise e interpretação das Memórias póstumas de Brás Cubas, Nankin Editorial/Edusp, 2ª edição, 2008

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