PNE (Plano Nacional de Educação)

Sobre currículo: alunos não são copos, e professores não são jarras

Daniel Cara

Daniel Cara

  • Igor Tarasyuk/Getty Images

A política curricular é uma questão difícil no mundo todo. Porém, é preciso enfrentá-la. Não há dúvida de que é necessário definir o que as crianças, os adolescentes, os jovens e os adultos vão aprender. O problema central é: quem a define, com quais critérios, com qual visão de educação e para qual projeto de nação?

Em "Vida e morte do grande sistema escolar americano: como os testes padronizados e o modelo de mercado ameaçam a educação", a historiadora Diane Ravicht advoga a necessidade de um currículo enraizado nas artes e nas ciências, que leve os estudantes à busca pelo conhecimento. O objetivo é preparar para a cidadania plena. Um cidadão precisa refletir e ter capacidade de tomar decisões sobre sua própria vida. A escola deve colaborar com sua preparação para isso.

Ravitch é uma autora reconhecida na área da educação. Sua principal contribuição está em criticar as reformas ocorridas nos Estados Unidos que impuseram a lógica do mercado às escolas e aos sistemas escolares. Sua peculiaridade reside em sua experiência. Ravitch colaborou com a implementação das reformas empresariais nos EUA, porém percebeu o quanto elas foram danosas ao direito à educação naquele país.

Para ela, a grosso modo, o sucesso das escolas depende de múltiplos fatores, como a definição de um currículo sólido, professores bem preparados, infraestrutura adequada, estudantes dispostos, pais participativos e a interação entre a política educacional e outras políticas sociais, como saúde e assistência social, por exemplo. Ou seja, currículo é um componente importante do direito à educação. Tão essencial quanto outros.

A reforma curricular no Brasil

Com a sanção do novo PNE (Plano Nacional de Educação), na forma da lei 13.005/2014, os ensinos fundamental e médio deverão ter uma "base nacional comum curricular". Esse mecanismo está demandado desde 1996 pela LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional), porém nunca foi elaborado.

Segundo o PNE, essa base nacional comum curricular deverá ser "configurada" por "direitos e objetivos de aprendizagem e desenvolvimento" específicos para cada uma dessas etapas da educação básica. A tendência é que se inicie um extenso e desejável processo de definição de cada um desses termos. O debate será marcado por disputas que denotam concepções de educação e de currículo, visões distintas sobre o papel do professor nos processos de ensino e aprendizagem, o que é relevante ser ensinado, qual deve ser o grau de detalhamento da base nacional comum curricular, quem define cada um desses aspectos, entre outras questões. Não há outro caminho.

No momento, há grupos que se organizam em torno do tema. O MEC (Ministério da Educação), sob liderança da Secretária de Educação Básica, Maria Beatriz Luce, reuniu um bom grupo de organizações nacionais, composto por entidades de pesquisa em educação, entidades de formação de professores, sindicatos, gestores públicos e conselheiros para tratar do tema. Faltaram grupos e movimentos relevantes da sociedade civil, mas ter iniciado o debate foi uma resolução acertada. Uma boa possibilidade seria agregar o Fórum Nacional de Educação na discussão, esfera fortalecida pela lei do PNE e composta por representantes de governo e da sociedade civil.

Em paralelo, o CNE (Conselho Nacional de Educação), órgão assessor do MEC, também desencadeou um processo de consulta sobre o tema, com audiências públicas e organização de debates. A Campanha Nacional pelo Direito à Educação pautou a base nacional comum em sua última reunião de Comitê Diretivo, realizada em junho desse ano. A Fundação Lemman articula, desde 2013, um grupo amplo de especialistas, gestores, pesquisadores e representantes de institutos e fundações.

A lei do PNE determina que a base nacional comum seja elaborada por uma instância de coordenação federativa composta por União, Estados, Distrito Federal e municípios. Dada a complexidade do tema, essa composição é marcadamente insuficiente. O consenso estabelecido entre os atores que participam do debate é que o MEC tem a responsabilidade e a legitimidade de convocar e articular esse processo deliberativo, que deve ser plural. Este é o desafio; ele não é pequeno.

Copo cheio, copo vazio

Por causa da complexidade do tema, não será fácil estabelecer um acordo sobre cada um desses aspectos envolvidos na definição de uma política curricular, mas, antes, é preciso evitar alguns percursos que estão sendo trilhados erroneamente nessa discussão.

Muitos "especialistas em educação" – aqueles entre aspas, que não conhecem a realidade das salas de aula, das escolas e dos sistemas públicos de ensino – veem as alunas e os alunos como copos. Alguns deles vão dizer que é justo colocar em cada recipiente (aluna ou aluno), no mínimo, o fundamental. Ou seja, propõem que todos os copos devam ser completados até a metade com água – o líquido essencial. Como se sabe, é desejável que a água seja límpida e inodora, podendo ser avaliada em testes padronizados de larga escala por seu grau de qualidade.

Outros vão além. Dirão que é justo encher completamente o copo de água. Por que apenas o mínimo? Afinal de contas, copos cheios também podem ser testados em seu grau de pureza. Alguns discordarão em parte. Argumentarão que além da metade de água, consideram que é preciso incluir outras possibilidades. Talvez uma determinada quantidade de suco, talvez de uma fruta local, afinal de contas, o Brasil é tão grande... Mas reforçam: a água é essencial, contudo é bom dar um pouquinho mais. Ademais, ampliados os parâmetros, a mistura também pode ser avaliada.

Nesse momento surgem novas polêmicas. Alguns acusarão que determinadas escolas e determinados governos querem encher os copos com suco de clorofila, outros com refrigerante, denotando ideologização do ensino. Alguns religiosos defenderão a essencialidade de um pouco de água sacralizada... E por aí vai.

Perspectiva equivocada

O problema é que essa perspectiva está completamente equivocada. Os alunos e as alunas não são copos, professores não são jarras, sistemas públicos de ensino não devem ser centrais de distribuição de líquidos. E o objetivo da educação não é verificar o quanto e como foi cheio ou não um recipiente. A missão da educação não é a avaliação da aprendizagem e, sim, a própria aprendizagem na perspectiva da formação integral do cidadão.

É cientificamente sabido que todo ser humano tem infinita capacidade de aprender; copos e jarras, por sua vez, transbordam. Docentes e estudantes não são recipientes inertes. Cultura e conhecimento não é matéria que se transfere: não se tira de um para dar a outro. Alunos e professores vivenciam processos pedagógicos diversos. Um bom professor é aquele que é capaz de apresentar e construir caminhos para a aprendizagem dos alunos e das alunas, de preferência quando pode considerar cada estudante em sua especificidade. Ambos são sujeitos no processo pedagógico.

Definir uma base nacional comum é algo relevante, pois deve servir como ponto de partida, tanto para o currículo dos cursos dedicados à formação inicial dos professores como também para o trabalho dos docentes em sala de aula. Podem colaborar ainda para a formulação de propostas de formação continuada mais significativas para os profissionais do magistério. Servirá também como uma referência para a organização e o planejamento do ano letivo. Além disso, deve colaborar com o acompanhamento dos pais e da sociedade sobre o trabalho dos sistemas públicos de ensino e das escolas. Contudo, não se trata de uma receita de bolo sobre como dar aula, como querem alguns. Deve ser um instrumento que alimente e subsidie o trabalho do professor, sem limitá-lo ou mecanizá-lo.

Tal como afirma Diane Ravitch quando trata da questão do currículo nos EUA, a base nacional comum no Brasil não pode determinar apenas o mínimo. Sua missão deve ser garantir parte essencial do que é necessário para a preparação dos estudantes para uma vida plena, que vai muito além de aprender apenas português, matemática e, talvez, um pouquinho de ciências. E essa base deve ser superada em cada sistema de ensino, com saberes que são específicos dessa ou daquela região, dessa ou daquela realidade.

Uma reforma curricular no Brasil é, sem dúvida, um dos componentes relevantes do direito à educação. Impõe a necessidade de envolver professores, pesquisadores, formadores de professores, entidades da sociedade civil, sindicatos, gestores públicos, conselheiros de educação, estudantes e familiares. Caso contrário, a definição da "base nacional comum" poderá ser apenas mais uma experiência de reforma curricular que ficou aquém de cumprir com sua missão, tal como ocorreu, anteriormente e por motivos distintos com os PCNs (Parâmetros Curriculares Nacionais) e com as DCNs (Diretrizes Curriculares Nacionais).

Daniel Cara

Coordenador-geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, bacharel em ciências sociais e mestre em ciência política pela USP.

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