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Para economizar, historiador mora dentro de van em universidade dos EUA

Sem dinheiro para pagar aluguel, estudante da Universidade de Duke vive dentro de carro - Richard Welch/The New York Times
Sem dinheiro para pagar aluguel, estudante da Universidade de Duke vive dentro de carro Imagem: Richard Welch/The New York Times

Ken Ilgunas

Especial para o New York Times

17/04/2013 12h12Atualizada em 17/04/2013 16h16

Quando foi aceito na pós graduação da Duke University, o norte-americano Ken Ilgunas não tinha dinheiro suficiente para bancar seu curso e o custo de vida. Ainda com uma dívida de US$ 32 mil pelo financiamento da graduação, Ken decidiu que reduziria seus gastos para não ter que fazer outro empréstimo. 

A decisão tomada foi comprar uma van e morar em um estacionamento do campus. Para o acesso a internet e eletricidade, usou a biblioteca. Para o banho, usava uma academia de ginástica barata. Para alimentação, cozinhava suas refeições. 

A história é contada no livro "Walden on Wheels: On the Open Road From Debt to Freedom", que será lançado em maio pela editora New Harvest.

Confira o relato de Ken Ilgunas:

Será que eu conseguiria morar em uma van? Estudei os anúncios do Craiglist, peguei um ônibus para a revendedora de carros usados do John em Raleigh, Carolina do Norte, e caminhei por fileiras de sedãs, caminhonetes e SUVs em busca da minha nova casa.

E lá estava ela. Uma van Ford Econoline gigantesca, de 1994, coberta com uma camada de tinta cor de vinho, as janelas refletindo o sol até cegar. Parecia fora de lugar entre as SUVs brilhantes, sem nenhuma mancha, cujos para-choques olhavam para fora orgulhosamente, como se exibissem um desdém juvenil por seu ancião pesado. Sua barriga distendida parecia vulneravelmente baixa –a ponto de me perguntar se não ia se arrastar quando passasse por algum quebra-molas.

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Era grande, linda e, melhor de tudo, custava só US$ 1.500 (cerca de R$ 3.000).

Apesar de o anúncio prometer que a van era “ótima de dirigir”, tinha suficientes problemas para justificar o preço. Uma das duas portas laterais não abria, tinha grandes manchas nas janelas onde o filme do vidro havia descascado, e os pneus estavam carecas –tão carecas que, mais tarde, quando fui comprar uma peça na Sears, os dois mecânicos se dobraram de tanto rir quando perguntei a eles se achavam que os pneus seriam aprovados na vistoria.

“Vou levá-la”, disse ao John de qualquer forma, incapaz de conter meu sorriso. Apesar de todas as deformidades, foi amor à primeira vista.

Preço da educação

Eu tinha ingressado na pós-graduação de estudos liberais da Universidade de Duke, mas não tinha como pagar o curso. Eu tinha acabado de pagar minha dívida de graduação de US$ 32.000, estava praticamente quebrado e a perspectiva de voltar a pegar um empréstimo era impensável. Voltar a me endividar fazia tanto sentido para mim quando sair de um prédio pegando fogo para entrar em outro.

Hoje, o custo da educação superior é ridículo. O custo médio de uma universidade pública é de US$ 8.655. Já em uma universidade privada é de US$ 29.056. Meu programa custaria, no total, razoáveis US$ 11.000, com a ajuda de uma bolsa. Mas não é apenas a mensalidade que deixa os alunos endividados; é o alojamento e a alimentação. Na Duke, onde os preços são similares aos das universidades em torno do país, um quarto sem ar condicionado dividido com dois colegas custa US$ 5.464 por ano. O plano de alimentação mais barato para calouros é de assustadores US$ 5.540 por ano, ou US$ 27 por dia.


Quando somei os custos da mensalidade, livros, transporte, alimentação, alojamento, sem mencionar o seguro do carro, telefone e, ouso dizer, alguma saída de lazer, senti-me desesperançado. Eu só tinha US$ 4.000 em meu nome e nenhum bem, além de uma mochila cheia de equipamento de acampamento. Mas apesar de desesperado, estava determinado a voltar a estudar.

O que me levou à seguinte pergunta: será que conseguiria morar em uma van?

Esse estilo de vida, pensei, poderia eliminar muitos custos. Para o acesso à Internet e eletricidade, usaria a biblioteca. Para o banho, usaria uma academia de ginástica barata. Para alimentação, cozinharia minhas próprias refeições. Como aluguel, não teria nenhum. Para encontros a dois, bem, provavelmente não teria pretendentes.

Dívida de US$ 32 mil

Sete anos e meio antes, quando havia me inscrito na graduação da inscrevi da Universidade de Buffalo, eu não era do tipo de pessoa que teria feito algo tão audacioso e estranho e possivelmente ilegal, como morar secretamente em uma van decadente em um campus universitário. Mas algo mudou na minha jornada para saldar a dívida.

Além de uma dívida de US$ 32.000, minha graduação deu-me um diploma pouco rentável de história e inglês. Naturalmente, tive dificuldades em encontrar trabalho e acabei aceitando um emprego de US$ 9 por hora como guia turístico e cozinheiro em uma parada de caminhões remota chamada Coldfoot, no Alasca.

Mas apesar de ter aceitado o emprego por desespero, acidentalmente coloquei-me em uma situação praticamente ideal para pagar minha dívida. Em Coldfoot, a loja mais próxima ficava a 400 km de distância (o que eliminou todas as tentações de comprar coisas), não havia sinal de celular (tornando desnecessária a contratação de um plano) e os funcionários recebiam alojamento e alimentação gratuitas (ou seja, nenhum aluguel ou contas de luz e supermercado). Depois de um ano, eu tinha pago US$ 18.000. Um ano depois, consegui um emprego melhor no Departamento de Parques. Depois de dois anos e meio de trabalho, eu estava livre de dívidas.

Contudo, minha viagem não foi apenas um despertar financeiro. Eu aprendi sobre subsistência morando nas aldeias árticas e trabalhei com um senhor de 74 anos que vivia em seu Chevette Suburban de 1980 o ano todo. Comecei a questionar o que era “normal” nos Estados continentais, especialmente quando tantas vezes levava a uma vida de trabalho, contas e compras no Bed Bath & Beyond. Livre de dívidas, sentia que pela primeira vez minha vida era minha e que eu poderia fazer o que quisesse.

Mais do que tudo, eu queria usar essa liberdade para continuar a estudar as artes liberais que tinham me deixado com tantas dívidas. Apesar do custo da minha educação ter acorrentado meus tornozelos às bolas de ferro do endividamento, as artes liberais tinham libertado outra parte de mim. Entre o experimento Thoreauviano de morar em uma van e estudar os grandes pensadores, pensei que Duke iria me ajudar a me tornar uma pessoa melhor. Viver em uma van não seria apenas uma forma de pagar o curso. Seria uma aventura. Seria meu “Walden on Wheels”.

“Dá para viver em uma van?”, perguntei-me uma última vez. Por que não?

Primeiros dias na van

O semestre da primavera ia começar em dois dias, então passei um dia tornando a van mais confortável. Removi os dois bancos do meio para criar um espaço de habitação, trouxe um caixote de plástico para guardar meus bens, dobrei todas minhas roupas arrumadas na mala e comprei uma lona preta grande para pendurar atrás dos assentos do motorista e do passageiro, para que ninguém pudesse me ver lá dentro.


Eu sabia que tinha o tipo certo de personalidade para morar em uma van. Eu tinha desenvolvido uma sensação de conforto em acomodações apertadas, um sexto sentido para coisas baratas e uma tolerância para esqualidez inigualáveis (detesto me gabar). Eu também tinha a constituição física para tanto: fui abençoado com uma alta tolerância ao frio, praticamente nenhum olfato e uma bexiga do tamanho de uma bola de futebol (detesto me gabar).

Mas as primeiras semanas não se compararam à minha visão romântica de uma vida Waldenesca de textos antigos e solidão silenciosa. Eu tive que usar o estacionamento Mill Lot, que fica no meio de um distrito de compras movimentado, a 1,5 km do campus, no coração de Durham. Estacionei entre um bar de estudantes e um prédio de apartamentos, de onde se viam escritórios com homens e mulheres com roupas de trabalho que poderiam me descobrir, para minha preocupação.

Apesar do estacionamento raramente ser visitado, eu ficava constantemente paranoico em ser descoberto. Como eu não sabia o que a universidade diria se descobrisse o meu experimento, estava determinado em mantê-lo em segredo. Não contava para ninguém. E para garantir minha invisibilidade, como dizem os moradores de vans (visite o grupo do Yahoo “VanDwellers”), toda manhã eu levantava as cortinas e olhava para fora da janela para ter certeza que ninguém me visse sair da van, e não entrava de novo a não ser tarde da noite. Toda vez que o assunto de onde eu morava aparecia em conversas com meus colegas, eu mentia à vontade.

Meu segredo estava tornando impossível fazer amizades, eu estava dormindo em temperaturas de até 10 graus e, homem solteiro morando apertado, estava constantemente exposto a estranhos odores. Pior de tudo, sentia uma solidão terrível se estabelecendo fundo em mim. Para compensar, comecei a cantar e a falar sozinho com frequência sem precedentes.

Minha principal preocupação, porém, era que meu dinheiro estava sumindo. Depois da minha primeira semana de compras –a van, os livros, as taxas escolares, o seguro do carro, comida e um plano de celular- eu tinha menos de US$ 1.000 em minha poupança e US$ 2.000 a pagar dos cursos. Eu não tinha mais nada para cortar, então tentei comer o mínimo possível. Um dia, caminhando de volta da biblioteca, vi fatias de pizza jogadas em uma caixa em um gramado. Uma fome selvagem rugiu em minha barriga. Já tinha chegado a esse ponto?

Virei cobaia de pesquisas

Minhas preocupações foram temporariamente aliviadas quando eu me tornei um “participante de pesquisa”, ou seja, uma cobaia paga pelo departamento de neurociências da Duke. Várias vezes por semana, por US$ 10 a hora, eu era estimulado por eletrodos, espetado por agulhas e entorpecido por medicamentos. Sem a menor vergonha, doei três de meus fluidos corporais básicos. Mais tarde, descobri pesquisas que pagavam US$ 20 por hora para fazer testes cognitivos dentro de uma máquina de ressonância magnética.

Apesar do estilo de vida de morador de van ter sua parcela de sofrimento, adaptei-me. Em meu fogão de acampamento de isobutano, fazia refeições generosas toda noite, em geral uma combinação de legumes, macarrão e manteiga de amendoim. Eu só tinha uma panela, então todas as minhas refeições eram ensopados: ensopado de macarrão, ensopado de arroz, ensopado de feijão, ensopado de legumes, com colheradas ricas em calorias de manteiga de amendoim. Para o café da manhã, comia cereais com leite em pó e, para o almoço, fazia sanduíches que levava para o campus. Na academia, eu tomava banho, fazia a barba, escovava os dentes e enchia grandes garrafas de água para cozinhar.

De vez em quando, lavava minhas roupas em uma lavanderia perto do meu local de estacionamento e fazia todos os meus estudos na biblioteca da universidade, onde eu usava o Wi-Fi gratuito e carregava meus aparelhos eletrônicos. A van não oferecia proteção ao frio, mas depois que eu me tremia todo para entrar em minhas ceroulas térmicas e entrar em meu saco de dormir, embrulhado em meu próprio calor corporal, caía em um torpor profundo e pacífico.

O estilo de vida de morador de van provou-se tão barato quanto eu suspeitava. Eu conseguia comer por US$ 4,34 por dia e vivia com US$ 103 por semana. Minhas finanças se tornaram ainda mais administráveis quando consegui um emprego de meio período ensinando em uma escola de ensino fundamental.


Eu só fui comer em um restaurante na metade do semestre, em uma viagem de uma semana a uma estação de campo para minha aula de “Biodiversidade na Carolina do Norte”. Um dia antes da viagem, minha mãe me enviou um email me lembrando do imposto de renda. Eu ia receber uma restituição! Era um bilhete de ouro de US$ 1.600 que o Tio Sam ia botar na minha conta. Eu estava rico. Entendi que era um ponto de virada. Pela primeira vez em meses, tinha segurança financeira. Não sou mais pobre, pensei nostalgicamente.

Sabendo que minha restituição ia chegar, relaxei em meus padrões espartanos: comprei uma caixa de cerveja, jantei em um restaurante duas vezes e, na estação de campo, dormi em um quarto aquecido em uma cama confortável. Mas esse tratamento me fez sentir uma culpa estranha, como se eu tivesse quebrado uma promessa comigo mesmo. Em minha terceira noite na estação, aflito, levei meu saco de dormir para fora e dormi no chão sob as estrelas.

Eu não precisava dessas coisas. Da cerveja, da comida ou mesmo da cama. Eu nem queria realmente nada disso. Eu estava comprando as coisas simplesmente porque podia. Se você coloca um homem em um clube de campo, ele vai sentir a necessidade de ter um iate. Mas se você o coloca na floresta, seus desejos serão somente os essenciais a sua sobrevivência. Eu tinha decidido não pegar empréstimos para minha pós-graduação em parte porque eu sabia que, se eu me permitisse acesso a dinheiro fácil, novamente seria vítima da armadilha do consumismo. Eu seria imprudente com meu dinheiro. Começaria gastar e a contar com coisas que achava que precisava, mas que não precisava. Eu perderia a perspectiva. Eu não queria novamente ser engolido pela cultura dominante, aceitando como meus suas normas e valores e desejos.

Faltava gente

Eu sabia o que estava faltando em minha vida. Não eram coisas. Não era aquecimento, encanamento, um iPhone ou uma televisão de plasma. Era gente. Era comunidade. Era ter um papel significativo na sociedade. E –por mais que eu quisesse essas coisas- eu sabia que poderia ficar temporariamente sem.

Quando não estava trabalhando ou em sala de aula, eu deitava na cama por horas, lendo, pensando, fazendo nada, apreciando a solidão, olhando para o teto, à toa, sem me preocupar em ser produtivo e útil. Pensava em tudo, desde a Via Láctea até os pedaços de pão no chão.

Ah, e as artes liberais. Estudar artes liberais, depois de anos trabalhando em campos distantes que não tinham nem uma pilha de livros usados, parecia um alimento vital para uma alma esfomeada. Eu li Rousseau e Diógenes e Thoreau, e minha formação em artes liberais, assim como minha formação de morar na van, vieram juntas como dois rios se juntando em uma confluência e virando um só.

No final do semestre, voltei para o Alasca para o verão, onde trabalhei e recuperei minha conta de banco. Com a aproximação do outono, estudei os preços de apartamentos perto de Duke. Comecei a pensar como minha van tinha se tornado menos como um experimento e mais como uma casa de verdade. Lembrei-me das árvores que sombreavam minha vaga e tinham galhos pesados com flores brancas, grossas e lustrosas, e como elas zoavam com um milhão de abelhas e cheiravam como o cabelo de uma mulher. Eu me lembrei de como, pela manhã, eu acordava com uma orquestra de pássaros tão alta e alegre que parecia que minha caverna estava enfiada em uma mata em Walden Pond.

Para mim, a cabana de Thoreau não foi só uma casa; era uma forma de imaginar a vida; era a convicção de que podemos tornar as viagens mais selvagens de nossa imaginação em algo real. E eu sabia que, se eu vivesse sobre rodas ou preso ao chão, eu seria, de certa forma, um morador de van para a vida toda.

Naquele semestre de outono, perguntei-me: “Será que eu poderia morar em uma van?”

E como não? 

Traduzido por Deborah Weinberg