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Cultura popular ensina a equilibrar ordem e desordem, diz Antonio Nóbrega

Geyson Magno/UOL
Imagem: Geyson Magno/UOL

Thiago Varella

Colaboração para o UOL, em Campinas (SP)

31/08/2016 06h00Atualizada em 13/10/2016 12h18

Difícil alguém que hoje, no Brasil, entenda mais de cultura popular do que Antonio Nóbrega. Talvez existam teóricos mais renomados, mas poucos conseguem ir com tanta naturalidade do estudo para a prática quanto ele.

O artista pernambucano preparou a série de eventos “Do Semba ao Samba”, que está acontecendo desde o fim de julho no Sesc Pinheiros, zona oeste de São Paulo. Chega a ser difícil rotular o que ele organizou. São aulas-espetáculos, rodas de conversa e oficinas de dança que culminam em uma série de shows entre os dias 26 de agosto a 4 de setembro.

Em um bate-papo com o UOL, Nóbrega falou sobre a relação entre cultura popular e sala de aula. Para ele, as manifestações populares brasileiras podem ser procedimentos propulsores de processos educativos. Mais do que isso, a cultura pode ajudar o estudante a equilibrar ordem e desordem, rigor e quebra de regras. Confira abaixo a entrevista.

UOL - Como você vê a relação entre cultura popular, como o samba, por exemplo, e a educação?

Antonio Nóbrega - As manifestações populares brasileiras tanto podem ser compreendidas de uma forma mais simples, superficial, ou dentro de um escopo mais complexo, mais rico, de possibilidades educacionais. O samba é multidisciplinar. Nele há o texto poético, a melodia, um padrão de harmonia - com ricas possibilidades - e a presença de ritmo, sem falar dos instrumentos que podem estar presentes.

Se a gente selecionar cada um desses elementos, a gente encontra formas, procedimentos propulsores de processos educativos. Um samba rural da Bahia, por exemplo, é feito na décima de sete sílabas. Esses elementos são muitos educativos, porque eles formalizam processos de absorção de conhecimento.

Qualquer pessoa sabe que tratar com o mundo é equilibrar rigor, obrigação, com o não-dever, com a ideia de quebrar regras. Principalmente o povo brasileiro que é um povo solto. À medida que você equilibra esses dois fatores se instaura o processo educativo. O que eu acho muito rico dentro do patrimônio cultural brasileiro é que ele nos dá a possibilidade de trabalhar esses dois polos de procedimento da vida humana: a ordem e a desordem.

Se você pega os sambas de Noel Rosa você se espanta com a qualidade formal dos poemas que ele fez para tratar os assuntos de suas canções. São rimas preciosas, prosódias. Por isso ele atende o posto de um cara genial. Ele atende essas duas categorias - a ordem e a desordem - de uma maneira rica, cheia de significado.

UOL - Dentro das escolas, na sua opinião, existe esse equilíbrio de ordem e desordem?

Nóbrega - Essa atividade de convidar ordem e desordem está ligada a um processo lúdico. Isso estimula. Encontrar a palavra certa para traduzir um pensamento. Você colocar uma cantiga que se adequa à prosódia. Desafio que provoca o desejo de conquistar esse estágio sem ser algo pressionador no sentido da ordem.

A gente vive num mundo em que a gente não quer a ordem. Mas a gente precisa dela. O povo brasileiro principalmente. A gente tem de entender como a gente cria esse universo de ordem e desordem.

Quer um exemplo? O povo fala da forma cativante que o brasileiro recebeu o povo nas Olimpíadas. A generosidade e a efusividade às vezes, fora de seu lugar correto, podem se transformar em anarquia, em desordem, em desrespeito. No tênis de mesa, jogo de atenção, se a plateia fica agitada, fica desrespeitoso. O brasileiro tem propensão pela exorbitância, pelo excesso, pela emoção. A gente não sabe colocar as coisas no seu devido lugar. Eu tenho para mim que esses mecanismos para tratar com isso têm de ser dados quando a pessoa é jovem. Nesse sentido que a cultura brasileira dá proventos muito bons.

UOL - Existe hoje o diálogo entre cultura popular brasileira e educação?

Nóbrega - A gente não estudou mais profundamente o universo popular. A gente aprende por clichês e estereótipos. Músicas populares se confundem com músicas folclóricas. Tudo vira folclore, vira acessório. A edulcorização da cultura impede um olhar mais profundo.

UOL - O que é o projeto “Do Semba ao Samba”?

Nóbrega - É um projeto multidisciplinar que tem a construção de um espetáculo em cartaz no Sesc Pinheiros. Justamente para tentar colocar essas ideias em conversa é que idealizei esse projeto de oficinas, mesas-redondas, sambadas – encontros de dança e canto. Enfim, exercer um pouco mais esse universo que direta e indiretamente está ligado ao samba.

UOL - A gente dá a importância devida ao samba?

Nóbrega - Só dentro de um patamar folclórico. Tem escolas que propiciam um conhecimento um pouco mais efetivo do samba, com uma relação menos superficial. No YouTube, você encontra. Mas isso não está no dia a dia da cultura de massa. No nosso país, o cartão postal é diferente do que está além e aquém dele.

A sociedade capitalista acentuou demasiadamente a nossa tendência ao lucro, à exorbitância, à competitividade. São os grandes atributos da sociedade do varão, do macho. Nossa sociedade é muito viril, da guerra.