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Expulsa de casa, trans quer ser a 1ª da família a entrar na universidade

Patrícia Borges é uma das alunas mais antigas do Cursinho Popular Transformação, voltado para transexuais, travestis e pessoas não binárias - Mirthyani Bezerra/UOL
Patrícia Borges é uma das alunas mais antigas do Cursinho Popular Transformação, voltado para transexuais, travestis e pessoas não binárias Imagem: Mirthyani Bezerra/UOL

Mirthyani Bezerra

Do UOL, em São Paulo

25/10/2016 06h00

Todas as tardes de segundas e quintas-feiras, Patrícia Borges, 26, sai da Vila Mariana, na zona sul de São Paulo, rumo ao centro da capital paulista para se preparar para as provas do Enem (Exame Nacional do Ensino Médio).

Ela é uma das alunas do Cursinho Popular Transformação, que funciona em uma das salas do CRD (Centro de Referência e Defesa da Diversidade), no centro da capital paulista, voltado para transexuais, travestis e pessoas não binárias --que não se identificam com gêneros.

"Ninguém na minha família é formado. Eu quero mostrar que a adolescente que expulsaram de casa foi a única que conseguiu entrar em uma faculdade", afirma. Ela foi expulsa de casa aos 13 anos porque a família não aceitava a sua identidade de gênero --Patrícia nasceu com o sexo biológico masculino.

Conseguiu terminar o ensino médio só no ano passado em uma escola estadual na Vila Mariana. “Era difícil estudar lá. Sempre bati de frente com a direção para ter meu nome social [o nome com que se identifica] respeitado. Tive que lutar muito para que a lista de chamada tivesse o meu nome social”, conta.

Ela fez Enem pela primeira vez no ano passado e este ano está estudando para conseguir entrar em enfermagem.  Mas o seu grande sonho é conseguir uma vaga em direito.

"Na prova do ano passado eu fiz 435 pontos. Faltaram 15 para que eu pudesse alcançar algo [450 é a nota mínima para participar do processo seletivo das universidades]”, conta Patrícia. “Estou me preparando esse ano para conseguir superar essa marca. Estou bastante otimista e não vou desistir jamais."

Patrícia soube das aulas de preparação para o Enem no Cursinho Transformação no começo do ano por uma amiga que havia participado das aulas no ano passado. Hoje, é uma das alunas mais antigas do cursinho.

Muito além do Enem

Guilhermina - Mirthyani Bezerra/UOL - Mirthyani Bezerra/UOL
Guilhermina Marques, 23, quer estudar audiovisual. Ela conheceu o cursinho através dos saraus que o coletivo Transformação realiza regularmente
Imagem: Mirthyani Bezerra/UOL

Passar no Enem não é o principal objetivo do curso. "Queremos ser um espaço de discussão política, sobre sociedade, cidadania, sobre empoderamento", explica Raísa Martins, uma das coordenadoras do projeto.

Nesse processo, conta Martins, os alunos participam de palestras em universidades, visitam laboratórios e expõem suas produções artísticas em atividades externas ao cursinho, como o Transarau, um evento realizado regularmente pelo coletivo.

Guilhermina Marques, 23, conheceu o projeto justamente através do Transarau: "Curti a página [no Facebook] do sarau, soube do cursinho e comecei a estudar aqui no segundo semestre. Estudar aqui é mais do que fazer um cursinho. É quase uma terapia, a gente não se sente um peixe fora d'água", diz a aluna que vai tentar vaga no curso de artes visuais com a nota do Enem. "Também vou tentar audiovisual, na USP [Universidade de São Paulo], e moda na Belas Artes".

Bernardo - Mirthyani Bezerra/UOL - Mirthyani Bezerra/UOL
Bernardo Gabriel Moreira, 20, vai fazer Enem pela primeira vez. "Meu sonho é ser professor de inglês", conta
Imagem: Mirthyani Bezerra/UOL

Bernardo Gabriel Moreira, 20, vai fazer o Enem para conseguir o certificado do ensino médio e espera alcançar uma boa nota para entrar no curso de letras. "Sempre pensei em fazer faculdade, há pessoas formadas na minha família. Meu sonho é ser professor de inglês", conta. "É a primeira vez que vou fazer Enem. Fiz o simulado e já vi que vou precisar estudar mais química e física. Estou bem ansioso."

Como as aulas do Transformação não se restringem à preparação para o Exame Nacional do Ensino Médio, os alunos vão continuar estudando para os outros vestibulares.

É o caso de Lune Carvalho, 19, que não conseguiu se inscrever no Enem. O jovem vai tentar o vestibular da Unesp (Universidade Estadual Paulista) para artes plásticas. "Não tive um bom ensino médio. O mais complicado para mim são as matérias de exatas e também acho difícil interpretar textos, que é algo primordial no Enem. O curso está me ajudando muito nisso", conta.

Lune - Mirthyani Bezerra/UOL - Mirthyani Bezerra/UOL
Lune Carvalho, 19, não conseguiu se inscrever do Enem, mas vai tentar o vestibular da Unesp
Imagem: Mirthyani Bezerra/UOL

Transformação

O Cursinho Popular Transformação é um dos projetos mantidos pelo Coletivo Transformação e não tem fins lucrativos. As aulas acontecem em uma sala no primeiro andar do CRD (Centro de Referência e Defesa da Diversidade), no centro São Paulo, que é um prédio da prefeitura. O espaço foi cedido ao coletivo através de uma parceria com a organização não governamental Pela Vida, que administra o CRD.

O cursinho surgiu de um encontro realizado no ano passado, que reuniu representantes da comunidade LGBT em São Paulo, para debater onde atuar para fazer com que a população T (transexuais e travestis) tenha acesso a direitos.

"Vimos que o grande gargalo dessa população é a educação e que o Enem, apesar dos erros, é a forma de ingresso às universidades e que dá certificação do ensino médio. Decidimos então adotar o Enem como uma espécie de guia para o cursinho", explica Raísa Martins, uma das coordenadoras do projeto.

A primeira turma do cursinho teve início em agosto de 2015. As aulas acontecem nas tardes das segundas e quintas-feiras, quando são abordadas as áreas do conhecimento que caem na prova do Enem. São oferecidas ainda aulas de reforço para os alunos, que acontecem à noite.

Mais de 70 pessoas já passaram pela sala de aula do Cursinho Popular Transformação. Este ano, 12 delas estão inscritas no Enem.

"Inscrevemos os 12 participantes aqui no computador do cursinho e depois fizemos a solicitação para o uso do nome social. Mas esse processo ainda tem problemas. Uma das alunas não conseguiu o direito e ainda não sabe se vai fazer a prova", afirma Raísa Martins, uma das coordenadoras do projeto.

Segundo o Inep, 408 pessoas transexuais e travestis vão usar o nome social no Enem, um aumento de 46% em relação à edição de 2015. A possibilidade existe desde 2014. O Inep explica que recebeu 842 solicitações, das quais 432 foram reprovadas por falta da documentação exigida no edital.

Raísa conta que o cursinho pretende preparar kits, com água, barrinhas de cereal, para que os alunos levem no dia da prova.