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Por que não o trote solidário?

Lucila Cano

18/02/2011 07h00

Quando entrei na faculdade, ninguém imaginava que pudesse existir trote solidário. Aliás, solidariedade e outras palavras da mesma família só vieram se incorporar ao nosso vocabulário do dia a dia mais recentemente. A evolução da sociedade contribuiu para que as boas ações se revestissem de mais consistência e continuidade.

O trote ao qual me submeti foi ameno: água e farinha nos cabelos, cara pintada com pincel atômico e umas longas orelhas de cartolina presas à cabeça, em alusão a um burro. Assim caracterizada desfilei pelos corredores da faculdade, sempre na companhia de veteranos. Ao final, o pessoal tirou uma foto para registrar a recepção.

Tive sorte. Meu pai foi me buscar na saída do trote, o que me livrou de passar vexame pelas ruas. Em casa, um banho resolveu o resto. No dia seguinte e nos subsequentes, ninguém mais mexeu comigo. Nem com os outros calouros da classe. Ou seja, os veteranos daquela faculdade, daquela turma, daquele ano, eram praticamente uns santos.

Violência muitas vezes fatal

A história do trote é antiga. Dizem que foi importada pelos primeiros brasileiros da elite que foram estudar em Portugal.

Muitos são os casos de violência de que já ouvimos falar em época de trote. Alguns levaram jovens à morte e, para sempre, deixaram feridas na memória das famílias das vítimas e dos próprios agressores.

Essa necessidade de se impor pela força irracional, tão característica do ser humano, não me cabe avaliar, porque não sou especialista no assunto. Mas, sem dúvida, em decorrência de tantas histórias tristes, a sociedade começou a se movimentar.

Em uma rápida pesquisa sobre o trote, descobri o projeto “Trote Solidário 2010/1 – O papel da Academia no Despertar da Consciência Solidária”, coordenado pela Professora Matilde Leite Vilela Lelis, da Faculdade de Iporá (GO). Ela cita que em 2003 houve uma pesquisa da empresa júnior da PUC/SP que dizia que 54% das faculdades brasileiras já praticavam ações solidárias. Oito anos depois seria fantástico que o trote fosse 100% solidário, mas isso já é sonhar demais.

Ainda vejo muitos calouros pedindo dinheiro nas esquinas para bancar a cervejinha dos veteranos no final do dia. Acredito que em cidades Brasil afora - muitas abrigam renomadas faculdades -, o trote calcado no constrangimento ainda persista forte.

Mudança para melhor

O relato a seguir é de Gabriela Molinari, terceiro-anista de Medicina e, portanto, uma veterana. Ela faz parte da coordenadoria do  DAP (Departamento de Assistência e Previdência) da Faculdade de Medicina do ABC, situada em Santo André, Grande São Paulo. O DAP é uma iniciativa dos próprios alunos e há cinco anos realiza o trote solidário naquela instituição. Pelas palavras dela dá para sentir que as coisas estão mudando para melhor.

“Eu passei pelo trote normal: xingamentos e proibições. Não podia comer onde todos comiam. Não podia participar das atividades. O preconceito era grande. Os estudantes fugiam e poucos frequentavam as aulas nos primeiros dias. O trote solidário do DAP já existia, mas era uma outra atividade, no meio do ano. Só a partir deste ano é que o DAP assumiu a recepção de todos os alunos com o trote solidário.”

“Nosso objetivo, continua Gabriela, é realizar uma integração entre calouros e veteranos e ao mesmo tempo proporcionar algum tipo de benefício para a sociedade. Acreditamos que a essência de ser médico é a solidariedade, a doação, o olhar ao próximo e isso é o que buscamos passar para os novos alunos.”

Este ano o trote foi realizado em uma creche perto da faculdade. “Fizemos uma reforma no parquinho e nos muros. Realizamos atividades de dança, pintura e brincadeiras com as 93 crianças presentes. Também oferecemos lanche com salgados, doces e refrigerantes. Antigamente o trote era de brincadeiras constrangedoras, sem qualquer benefício para nenhum dos lados. Acredito que seja importantíssimo plantar desde o começo na mente dos alunos a ideia da humanização, que é tão essencial para a sua futura profissão.”

* Homenagem a Engel Paschoal (7/11/1945 a 31/3/2010), jornalista e escritor, criador desta coluna.