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Raça brasileira

Lucila Cano

23/11/2012 06h01

Aqueles que me veem branquela, de cabelos e olhos claros, desconfiam da história que conto do bisavô de sangue mestiço, fruto da união de um europeu com uma índia ou negra, não sei ao certo.

Não conheci meu bisavô, mas minha avó materna tinha pele morena, daquela que dispensa prolongadas, e por vezes dolorosas, exposições ao sol.

A pele morena “da cor do pecado”, eternizada no samba de Bororó em 1939 e sempre cantada pelos intérpretes da atualidade, causou problemas para minha avó, a partir do casamento.

Vítima de preconceito, dona Maria (Mariquinha para os mais chegados) enfrentou a pobreza ao lado do marido, filho de imigrantes italianos bem-sucedidos. Ao se juntar a uma “brasileira”, meu avô foi deserdado e expulso de casa com a roupa do corpo apenas.

Ele se tornou sapateiro e ela, dona de casa, além de costureira e bordadeira. Dos filhos que tiveram, um morreu criança. Quatro vingaram.  Minha mãe e uma irmã puxaram ao pai: brancas, de cabelos claros e olhos verdes. Meu tio e a tia caçula puxaram à mãe: brancos, mas nem tanto, de cabelos e olhos negros.

Preconceito e intolerância

Essa família brasileira viveu em dificuldades durante a maior parte de sua existência. Habitava porões escuros e respirava o ar de um ambiente mal ventilado, no qual o fogão a lenha cozinhava de dia, aquecia o leito à noite e adoentava os pulmões para sempre.

Há poucos meses perdi minha mãe. Da infância e da juventude sacrificadas ela herdou uma doença pulmonar crônica. Sim, eu sei que de alguma forma haveremos de morrer. No caso da mamãe, a causa mortis pode ter sido a ignorância. Ignorância que, não apenas no passado, mas a todo tempo alimenta o preconceito e a intolerância.

Faço este relato em decorrência do Dia da Consciência Negra, celebrado em 20 de novembro. Todos nós, brasileiros, somos resultado de uma fantástica miscigenação entre europeus, negros e índios, a qual gerou uma raça única: a raça brasileira. Raça essa que, no transcurso de sua história, ganhou ainda mais matizes de pele com a chegada de povos de todas as partes do mundo. Sem falar dos credos e costumes trazidos em suas bagagens.

Iguais, mas desiguais

As políticas de afirmação positiva e as cotas para negros nas escolas brasileiras seguem em discussão. Os que são contra dizem que a iniciativa não funcionou nos Estados Unidos. Os que são a favor alegam que, justamente por causa dessas ações, os Estados Unidos puderam propiciar mais oportunidades de educação aos negros. Tanto que, agora, podem abdicar da obrigatoriedade das políticas afirmativas.

Em maio de 2011, de acordo com o IBGE, ficamos sabendo que o Brasil tinha 16,27 milhões de pessoas em extrema pobreza. Essas pessoas representavam 8,5% da população, com rendimentos mensais de até R$ 70.

O levantamento também apontou que a grande maioria dos brasileiros em situação de miséria é parda ou negra, sendo que 53,3% vivem em áreas urbanas.

Segundo o último Censo, também soubemos que 52% da nossa população são pardos ou negros. A grandeza desse percentual, por si só, já justifica qualquer ação em favor da inclusão social desses brasileiros através da educação e do emprego.

Para encerrar, valho-me da “Oração aos Moços” de Rui Barbosa, ilustre defensor do abolicionismo. O texto dirigido a uma turma de formandos da Faculdade de Direito de São Paulo é de 1921 e pode ser facilmente encontrado na internet. Ele exorta os jovens advogados à reflexão a respeito da educação, do trabalho e da oração. Fala de igualdade e desigualdade e lembra o papel fundamental de cada indivíduo no sentido de corrigir injustiças sociais.

Entre vários trechos, este me pareceu apropriado para o momento que vivemos: “Mas, se a sociedade não pode igualar os que a natureza criou desiguais, cada um, nos limites da sua energia moral, pode reagir sobre as desigualdades nativas, pela educação, atividade e perseverança. Tal a missão do trabalho”.

* Homenagem a Engel Paschoal (7/11/1945 a 31/3/2010), jornalista e escritor, criador desta coluna.