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Morte digna - Um depoimento pessoal do autor do artigo

Carlos Alberto Pessoa Rosa

Tenho 56 anos. Há 45 anos, entrávamos nos anos 60. Na época, velava-se o morto nas casas. Não era incomum, após a brincadeira de rua, entrarmos em um velório para aproveitarmos o bolinho de chuva e o café. Morrer fluía como conseqüência natural da vida. Havia um ritual de respeito para com o morto. A estranheza transformava-se em solidariedade, e os vizinhos, deixando de lado possíveis desavenças, dividiam a tristeza com os familiares dos que partiam. Isto não quer dizer que não houvesse momentos de descontração. Nessas horas, era importante a presença de um vizinho que atenuasse a dor contando 'causos', ou piadas.

A hospitais e serviços públicos de saúde, poucos tinham acesso. Quando chás e benzedores não resolviam recorria-se à ciência, em geral para resolver casos cirúrgicos e clínicos graves. Tecnologias de ponta eram a radiografia e o eletrocardiograma. A terapêutica, na maioria das vezes, servia para tratar os sintomas. Acompanhei várias vezes meu avô com dor no peito ao Pronto-Socorro. Colocavam um comprimido debaixo de sua língua e uma máscara de oxigênio. Problema cardíaco, dizia o médico. Percebia-se a gravidade do veredicto pela expressão nos rostos de meus pais. Retornávamos em silêncio, esse companheiro da tristeza, sabíamos que uma manhã não estaria mais conosco. Morreu em uma das crises. Acredito que foi a estranheza com a doença de meu avô que me levou a escolher a Medicina como profissão.

Há 35 anos, década de 70, entrei na Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo. Minha geração acompanhou o surgimento das técnicas de imagem que vieram para auxiliar no diagnóstico, como o ultra-som, a tomografia computadorizada e arteriografia digital. A terapêutica também avançou, tanto a medicamentosa como a cirúrgica. Os centros da emoção e do pensamento, o coração e o cérebro, respectivamente, deixaram de ser tabus médicos. Cirurgia cardíaca passou a ser uma rotina, ou seja, meu avô poderia ter vivido mais caso tivesse nascido em outra época - logicamente, eu correria o risco de não ter nascido.

Com os avanços, a antiga enfermaria passou a ter o apoio de serviços complementares como a Unidade de Terapia Intensiva com seus monitores, marca-passos, respiradores, diálise e novas terapêuticas. Pouco a pouco, a tecnologia foi tirando o doente do carinho de seus familiares e colocando-o diante de pessoas, ruídos e cheiros estranhos. A morte passou a ser algo solitário, não compartilhado totalmente pelos parentes. Costumo dizer que os pacientes passaram a morrer e a sair "de fininho" pelo traseiro dos hospitais. O afastamento das crianças e jovens dos rituais de morte passou a ser uma realidade cada vez mais evidente.

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