Brasil e África - Semelhanças culturais aproximam povos diferentes
Carmen Lucia Campos, Especial para a Página 3 Pedagogia & Comunicação
Em tempos de Copa do Mundo, que pela primeira vez na história acontece em solo africano, é impossível não pensarmos nos laços que nos unem ao chamado Continente Negro. E nem precisa o nosso time entrar em campo para sentirmos na pele o quanto temos em comum com os povos que vivem do outro lado do Oceano Atlântico.
Essa ligação, evidentemente, vai muito além das camisas amarelas de Brasil e África do Sul, das comemorações coreográficas na hora do gol, da alegria contagiante do povo ou da criatividade sem fim da torcida canarinha e dos Bafana Bafana e suas vuvuzelas ensurdecedoras.
Se voltarmos aos tempos de escola, com certeza nos lembraremos das aulas sobre a escravidão, o tráfico para o Brasil de milhões de pessoas durante séculos, a convivência de africanos, portugueses e brasileiros, antes e depois da Abolição... E havia também a lista de contribuições dos africanos para a nossa cultura, que devia ser decorada para as provas!
A verdade é que a África continua muito presente nas nossas vidas, embora muitas vezes esqueçamos disso... Afinal, dela herdamos algumas marcas da nossa identidade cultural: o sabor da famosa feijoada, o ritmo contagiante do samba, os passos acrobáticos da capoeira, inúmeras palavras do nosso vocabulário - como "moleque" e "batuque" -, cultos religiosos, como o candomblé, que milhões de brasileiros seguem. E a moda também reflete essa influência: basta olharmos para o lado e encontraremos cabelos artisticamente trançados, tererês e rastafáris, exibidos por mulheres e homens, negros ou não, jovens e não tão jovens assim...
Quando o assunto é esporte, Brasil e África também se aproximam. Nas nossas corridas de rua, como a tradicional São Silvestre, que mobiliza a cidade de São Paulo todo fim de ano, a presença africana nos pódios já virou rotina: não faltam representantes de países como Quênia, Etiópia, Argélia e Nigéria - e muitos deles se tornaram famosos por aqui. Também nas olimpíadas e campeonatos mundiais de diversas modalidades esportivas é comum a torcida brasileira adotar atletas africanos e vibrar com suas conquistas internacionais.
Estilo dos africanos lembra o dos craques do Brasil
Mas é no futebol que África e Brasil ficam mais próximos: lá, como aqui, esse esporte arrasta multidões de fanáticos, e transforma os grandes jogadores em ídolos, um estímulo para crianças e jovens pobres realizarem o sonho de ir à Europa conquistar glórias e salários milionários.
O talento, a ginga, o improviso, a irreverência de brasileiros e africanos em campo muitas vezes desconcertam adversários, destroem esquemas táticos e contrariam os críticos, para delírio dos torcedores e frustração dos chatos teóricos do futebol.
Não é de hoje que astros brasileiros e africanos brilham nos principais campeonatos europeus. De um lado, Luís Fabiano, Robinho, Maicon; de outro, o camaronês Eto'o, o marfinense Drogba e o ganense Essien continuam mantendo a tradição de antigos conterrâneos e encantando plateias em todo o mundo. Não dá pra negar que o estilo dos craques africanos tem muito a ver com o melhor futebol que brasileiros sabem jogar e gostam de ver.
Na África, a simpatia pelos atletas brasileiros também é grande, beirando a veneração. Em 1969, o então Congo Belga (atual República Democrática do Congo) estava envolvido em uma guerra civil, mas as cidades de Kinshasa e Brazaville suspenderam temporariamente os ataques mútuos para que o time do Santos, comandado por Pelé, jogasse por lá, cumprindo contrato já assinado. Única exigência: que houvesse uma partida em cada cidade! Acordo cumprido, a delegação brasileira partiu e a guerra, infelizmente, recomeçou.
E vale lembrar ainda que um dos maiores ídolos do futebol de Gana, que brilhou nos campos durante nos anos 1980-1990, adotou o nome de Abedi Pelé.
O fato é que não será surpresa se o segundo time de muitos brasileiros nesta Copa do Mundo for África do Sul, Nigéria, Camarões, Gana ou Costa do Marfim, mesmo que esses países tenham chances bem remotas de vencer a competição. Mas não custa nada torcer e sonhar.
E por falar em sonhar, quem sabe, um dia a final do campeonato mundial de futebol coloque frente a frente Brasil e um representante da África. Seria o encontro de nações que têm em comum muito mais do que o amor ao esporte: histórias de lutas, de superação, de busca pelo desenvolvimento; e uma realidade social cheia de desigualdades, um povo que tem alegria de sobra para festejar os bons momentos da vida e uma garra inesgotável para driblar as dificuldades na luta pela sobrevivência.
Quando acontecer de a Copa do Mundo ser decidida entre brasileiros e africanos, é provável que os corações de ambas as torcidas fiquem um pouco divididos, como ocorre em competições que envolvem irmãos. Até lá continuemos a descobrir e valorizar nossas raízes, que vêm de um continente distante apenas geograficamente, terra de gente com quem aprendemos muitas lições e de quem emprestamos uma palavra, originalmente de cunho religioso, para transformá-la em caloroso desejo de felicidade uns aos outros: Axé!