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Filosofia pós-moderna - Nietzsche - A relativização dos valores

José Renato Salatiel, Especial para a Página 3 Pedagogia e Comunicação

No filme Batman: o Cavaleiro das Trevas há uma cena em que passageiros de duas barcas - prisioneiros em uma, cidadãos comuns em outra - vivenciam um dilema moral. Eles precisam escolher entre sobreviver e sacrificar a vida dos passageiros da outra barca, acionando um detonador de bomba antes que os outros decidam fazê-lo, ou se recusar a adotar essa medida e correr o risco de serem mortos.

Como saber qual a escolha correta em um cotidiano cujos valores de verdade, beleza e bem são relativos? Em que não há mais referências que balizem julgamentos sobre o bem e o mal? O que fazer quando não há mais crenças universais que deem sentido ao mundo? Nem família, religião ou qualquer projeto global que guie a humanidade?

Quando não há mais parâmetros para nortear situações como a mostrada no filme, estamos diante da pós-modernidade.

Na Era Moderna, o mundo estático e mantido coeso pelo cristianismo foi assolado pela rápida expansão comercial, a urbanização, a difusão da filosofia e das ciências modernas, além da aceleração dos meios de transporte e da comunicação na Europa. O estilo de vida moderno surge da fragmentação e efemeridade que caracterizam a vida nas grandes cidades: o que hoje se acredita, amanhã já não tem mais validade.

Mas a modernidade pôde ainda reunir os cacos da história e da sociedade e montar o quebra-cabeças, formando uma figura em que nos reconhecemos. Da multiplicidade da experiência moderna foi possível obter uma unidade, ou seja, ver algum sentido nisso tudo. Tal unidade foi encontrada na razão, conforme o projeto de modernidade criado pelos filósofos iluministas.

Voltando ao dilema das barcas em Batman, seria possível, de acordo com o projeto de modernidade, fazer uma escolha moral correta, científica, na qual teríamos certeza de estarmos fazendo o bem para toda a humanidade, bastando para isso seguir o raciocínio lógico.


 

Moderno x pós-moderno

A diferença, no pós-moderno, é que não é mais possível montar o quebra-cabeça. Ou seja, não existe mais uma doutrina que dê um sentido único para nossas vidas. Convivemos com o caos, a relativização e a instantaneidade das coisas. É como se estivéssemos em um barco à deriva, sem âncora ou terra firme para aportar.

Pode-se ter um exemplo disso na família. Pais e filhos são pessoas com desejos, personalidade e pontos de vistas diferentes. O papel da autoridade paterna era impor ordem no ambiente familiar. Mas quando valores como casamento e educação tradicional se transformam, a legitimidade da autoridade também se deteriora.

Em filosofia, um dos debates mais polêmicos da segunda metade do século 20 envolveu, de um lado, filósofos pós-modernos, também conhecidos como pensadores do pós-estruturalismo francês (para conhecer o estruturalismo, leia o texto Estruturalismo - Quais as origens desse método de análise?), e de outro, filósofos que advogavam a continuidade do projeto de modernidade.

Para os filósofos pós-modernos, não é mais possível pensar em sistemas filosóficos, pois a cultura contemporânea é profundamente marcada pela desconfiança em relação a ideais totalizantes, como o marxismo - e nisto eles discordam dos iluministas, que viam na razão e no progresso científico um instrumento de emancipação do homem.

Entre as características do chamado pensamento pós-moderno está o irracionalismo, o antifundacionismo (a impossibilidade de se fundamentar a filosofia em um princípio universal) e o relativismo.

Alguns dos filósofos mais influentes no pensamento pós-moderno são Nietzsche, Heidegger e Wittgenstein. Nenhum deles, é bom frisar, tomou parte no debate moderno x pós-moderno - e tampouco pode ter suas ideias restritas aos tópicos discutidos no contexto de nossa análise.



Valores em xeque

Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844-1900) foi crítico da doutrina platônica e do cristianismo, que concebiam um mundo ideal apartado do mundo material e imperfeito; ele questionou também a tarefa da filosofia, de remontar a uma suposta essência das coisas. Segundo Nietzsche, valores como o bem e a verdade não são absolutos, eternos, universais ou imutáveis; ao contrário, são socialmente e historicamente construídos e, portanto, tão contingentes quanto a vida humana.

Diz ele, em Sobre a verdade e a mentira no sentido extra-moral, de 1873: "(...) as verdades são ilusões, das quais se esqueceu que o são, metáforas que se tornaram gastas e sem força sensível, moedas que perderam sua efígie e agora só entram em consideração como metal, não mais como moedas".

Se não há mais bens últimos e supremos que balizem nossas ações, então o que resta ao ser humano é aceitar a provisoriedade da existência e interpretar o mundo, ao invés de descobrir seu suposto significado oculto sob a aparência das coisas.

Não há mais, portanto, um ponto de vista privilegiado do qual seja possível fazer julgamentos. Nem mesmo a razão iluminista, pois em Nietzsche a vida não se restringe apenas ao pensamento lógico e racional, em detrimento dos instintos e do corpo. Comportamentos são pautados, em sua grande parte, não por regras conscientes, mas por uma força que nos move, nos estimula, e que o filósofo chama de vontade de potência.

Com isso, Nietzsche insere problemáticas que seriam trabalhadas pelos pós-modernos, como o perspectivismo das interpretações de mundo e a relativização dos valores. No texto Filosofia pós-moderna - Heidegger e Wittgenstein, apresento as influências desses dois filósofos no pensamento pós-moderno.



Leituras

A respeito do pós-modernismo, o livro de David Harvey, Condição Pós-Moderna (Editora Loyola) traz um panorama que passa pelas artes, filosofia e economia. Boa parte da obra de Nietzsche foi publicada em português. Obras incompletas, da coleção Os Pensadores (Abril Cultural) é uma boa introdução aos textos do filósofo. Entre os comentadores, Scarlett Marton é a mais indicada, com vários livros, entre eles Nietzsche: a transvaloração dos valores (Editora Moderna). Leia também Nietzsche - Individualismo e vontade de poder.

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