Santo Anselmo da Cantuária - Argumento ontológico provoca discussões até hoje
No século 11 d.C., a Idade Média atingia seu período mais fecundo, firmando-se na expansão católica, no término definitivo das invasões bárbaras e na ascensão da cultura resgatada já desde os esforços de Carlos Magno. É nesse contexto que surge Santo Anselmo da Cantuária, um dos mais importantes pensadores medievais, considerado "o pai da Escolástica".
Formação
Nascido em 1033, no montanhoso vale de Aosta, norte da Itália, desde muito cedo Anselmo tende ao caminho da fé e da investigação que brilhantemente tomaria pelo resto de sua vida. Aos 23 anos, sai de casa e vaga pelas terras da Burgúndia e da França, até que, em 1059, chega à Normandia e se instala na famosa escola da abadia de Bec, regida pelo grande Lanfranc, a quem viria substituir em 1063, quando este se muda para a Cantuária.
É a partir de então que Bec cresce mais do que nunca. Anselmo escreve aí as suas principais obras e ganha fama, servindo também como conselheiro a governantes e nobres por toda a Europa. No ano de 1093, torna-se arcebispo da Cantuária, mais uma vez sucedendo o seu agora já falecido mestre Lanfranc.
Tão sólida era a sua fé cristã que enfrentou as ânsias absolutistas do próprio rei inglês Guilherme Rufus, exilando-se por quase uma década, até que Henrique 1º, soberano de atitudes mais conciliares, fez com que Anselmo voltasse a ocupar a sua sé. Mas não demora muito e, insatisfeito, sai em novo exílio, até 1107.
Apesar de todos esses problemas, continua a escrever importantes obras teológicas. Anselmo morre em 21 de abril de 1109.
Credo ut intelligam
Trilhando o sólido caminho de Santo Agostinho, Anselmo seguia também o seu credo ut intelligam, ou "creio para entender".
Essa postura, que permeia toda a fase inicial da Escolástica, afirma que o homem só é capaz de apreender as coisas quando assistido pela fé. Nenhum problema nessa época tem sentido sem, antes, partir da fé, do conhecimento superior, do divino, que é o que dá segurança às investigações filosóficas.
O lema de Anselmo é "a fé que procura entender" (fides quaerens intellectum). Como místico que também era, afirmava que o amor é um dos valores mais altos do conhecimento, pois é o amor que dá sentido à fé. A fé sem o amor é uma fé morta (otiosa fides). Sem o amor, a inteligência não tende para dentro do objeto do conhecimento.
Os diálogos - a verdade, a justiça e a liberdade
Inspirados no estilo platônico, os diálogos anselmianos são dirigidos a um melhor entendimento da Escritura e, consequentemente, de Deus. Cada um deles levanta um importante problema teológico e exerce a investigação metafísica necessária para resolvê-lo, desenvolvendo uma profunda conversa entre discípulo e mestre.
No diálogo "A Verdade", Anselmo argumenta que a verdade é a retidão do objeto percebida pela mente. E o que é a retidão? É algo ser o que é. Deus é a máxima retidão, a verdade suprema e eterna, é o que é infinitamente e que dita como tudo deve ser (conforme a metáfora neoplatônica, é o sol que ilumina).
A justiça, por sua vez, é uma subcategoria da verdade: a retidão não da mente à coisa, ou da coisa a si mesma, mas da vontade à coisa. A vontade reta é a vontade que deseja aquilo que se deve desejar.
No diálogo "A Liberdade de Arbítrio", Anselmo define o livre-arbítrio como a "capacidade de pecar e não pecar", ou o "poder de preservar a retidão da vontade em razão da própria retidão". Delineia-se, assim, uma correlação entre liberdade, verdade e justiça.
A verdade para Anselmo não está somente na conformação dos nossos juízos à realidade (uma verdade de conhecimento), mas em todo o nosso ser, como dizia Agostinho, tendo sua expressão na vontade, nas ações, nos sentidos, nas essências das coisas. Um agente justo deseja o que é certo, sabendo que é certo, porque é certo.
É por isso que, em "Sobre a Queda do Demônio", Anselmo afirma que os anjos, apesar de não poderem pecar, são mais livres do que os que pecam, pois conhecem diretamente a verdade suprema, que é Deus.
Mas e o pecado original do homem? E o demônio? Diz Anselmo que desde o início, ambos, como os anjos, tinham de possuir tanto a vontade de justiça quanto a vontade de felicidade. Se tivessem só uma delas, toda a origem de sua vontade seria divina, não haveria qualquer traço de ação autogerada.
Assim, quando os seres conscientes escolhem, eles ou subordinam a justiça à felicidade própria, ou a felicidade própria à justiça. Os anjos, ao escolherem o bem, foram recompensados com a felicidade e não podem mais pecar, pois possuem agora as duas vontades em plenitude. Ou seja, o livre-arbítrio perfeito é a incapacidade de pecar.
O argumento ontológico
Se no "Monológio" Anselmo apresenta o seu conceito de Deus como pura essência, infinitude, eternidade, imutabilidade, perfeição e unidade (ao modo neoplatônico), no "Proslógio" ele buscará demonstrar a necessidade desse Deus, através do famoso argumento ontológico, que provocou inúmeras controvérsias e continua dividindo pensadores até hoje.
Assim expõe Santo Anselmo: 1) percebemos uma hierarquia nos seres, tanto específica quanto genérica, e para cada ser deve haver um exemplar, o mais perfeito; 2) pode-se conceber um ser mais perfeito do que todos; 3) pode-se conceber um ser acima do qual nada se possa imaginar; 4) este ser existe necessariamente, pois, se não existisse, não seria o maior, e negá-lo seria negar a hierarquia dos seres.
O que Anselmo afirma é que nenhum ser pode surgir do nada, e subjacente a todos esses seres contingentes tem de estar um ser necessário. O argumento é fundado, quase que na sua totalidade, sobre o pensamento platônico, utilizando a demonstração a priori - algo rechaçada na Escolástica, que em geral dava preferência às provas a posteriori.
A mais famosa objeção à prova ontológica é a do contemporâneo de Anselmo, monge Gaunillon, que afirmava que pensar em ilhas perfeitas não implica a existência delas. Em resposta, Anselmo atentaria para o fato de que as ilhas perfeitas são seres contingentes, e não necessários, enquanto o maior ser concebido é um ser necessário. Em outras palavras, o seu argumento lidava com a necessidade evidente, e não com a causa e o efeito da lógica.
Além de Gaunillon, os mais famosos opositores da prova ontológica foram Tomás de Aquino, Hume e Kant. Entre seus defensores, alguns responsáveis por alterá-lo para dar mais clareza e solidez, estão Duns Scotus, Descartes e Leibniz, e o matemático Kurt Gödel, que no séc. 20 chegou a elaborar uma versão formalizada do argumento em lógica modal.
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