Golpe militar de 1964 (7) - terminado o período militar, sociedade passou a viver liberdade inédita
Alexandre Caverni, da Reuters, em São Paulo
Há mais de quatro décadas, a efervescência política que permeava o Brasil foi abortada pela deposição do presidente João Goulart. Passados mais de 20 anos do final do longo período militar que se seguiu ao golpe de Estado, a sociedade brasileira experimenta hoje uma liberdade de participação inédita.
A avaliação, diferenciada em sua graduação, é de três cientistas políticos especialistas na história daqueles tempos agitados.
"Já temos mais de 20 anos de democracia (...) as instituições mostraram muita resistência nesse período e hoje estamos em plena democracia", disse a pesquisadora do Cebrap Argenlina Figueiredo, fazendo rapidamente a ressalva de que "ela sempre pode ser aperfeiçoada".
Ao longo dos últimos anos houve um "crescimento do sociativismo, surgimento de inúmeros grupos de interesses, não só econômicos", explica o professor aposentado da UFRJ Wanderley Guilherme dos Santos.
Embora possa ser paradoxal a princípio, explica, "a participação da sociedade hoje está assentada em bases que foram criadas em silêncio durante o período militar". Isso porque, esses grupos e associações da sociedade civil, que não tinham uma atuação política explícita, não foram reprimidos durante o regime autoritário.
"Nossos generais não entendem de democracia, o que é evidente, e não perceberam o que estavam permitindo ser criado", acrescentou.
Apesar do muito barulho que as organizações, muitas delas ilegais --como o Comando Geral dos Trabalhadores (CGT)-- faziam no governo Goulart, argumenta Santos, "antes de 1964 a sociedade era baixamente organizada, participando basicamente das eleições".
Para o professor da Unicamp Caio Navarro de Toledo, o golpe de março de 1964 --resultado de um movimento conspiratório que contou com políticos conservadores, representantes do grande capital e a decisiva participação dos militares-- visou justamente "impedir um alargamento da democracia política e a realização das reformas sociais".
Toledo admite que, embora o período tenha sido um momento de "intensa politização da vida social brasileira", a falta de reação ao golpe mostra que, afinal, essa politização não tinha tanta consistência quanto se pensava na época. Ainda assim, insiste, "havia um processo que foi interrompido pelo golpe".
Como resume Argelina Figueiredo: "O período foi uma oportunidade perdida."
Disputa ideológica
Boa parte do embate político daquela época, especialmente no campo ideológico, não é de fácil compreensão no contexto atual. Durante o período, o mundo era divido basicamente em dois pólos: um, capitalista, gravitava em torno dos Estados Unidos, o outro, comunista, em torno da União Soviética.
Segundo Argelina Figueiredo, a radicalização existente no país era mais restrita às elites políticas --de ambos os lados-- sem encontrar eco na sociedade. Ausência de radicalização na sociedade, no entanto, não significava falta de opinião.
Entre a população, explica a professora, havia forte apoio às chamadas reformas de base, defendidas pelo governo e pela esquerda, como a reforma agrária --mesmo a desapropriação de terras para serem repassadas aos camponeses. Mas havia restrições a uma maior aproximação com Cuba, que passara a orbitar na esfera soviética.
"Havia um apoio à política externa independente, mas independente mesmo, nem para um lado, nem para o outro", disse Argelina, referindo-se à política iniciada no governo de Jânio Quadros, que buscava garantir ao Brasil uma atuação internacional que não se alinhasse automaticamente nem aos interesses dos Estados Unidos nem aos da União Soviética.
Novos tempos
Na avaliação de Argelina, passaram os tempos de conspirações --como as que levaram ao golpe de 1964. Mesmo porque, argumenta, as chamadas classes capitalistas hoje não precisam mais se organizar para responder rapidamente, em termos econômicos, quando seus interesses estão em xeque.
"Com a volatilidade dos mercados, com a possibilidade dos investidores tirarem seus recursos rapidamente dos países, a vulnerabilidade dos governos é grande."
Além disso, acrescenta Toledo, "quando há possibilidades de um questionamento maior, as classes possuidoras agem por meio de seus aparelhos ideológicos".
Para ele, um exemplo disso é a maneira como o Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST) tem sido tratado nos últimos anos.
"No momento em que o MST avança na sua proposta e na sua atuação política, as classes dominantes agem por meio da imprensa e não têm dúvida em demonizar o movimento e pedir que o Estado o reprima."
Toledo faz coro aos que avaliam que o governo de Luiz Inácio Lula da Silva Lula deixa a desejar quando não garante maiores avanços na área social ou mesmo no campo simbólico. O próprio fato, diz, de nem o governo nem o PT terem tido a iniciativa de fazer uma discussão sobre o golpe de 1964 "é revelador dos compromissos com as posições de centro-direita".
Argelina defende maior cautela àqueles que criticam a atuação do presidente, cujo governo ela considera como sendo a primeira coalizão que não está à direita no campo político desde o retorno do país à democracia.
Lembrando a radicalização do período pré-golpe, Argelina ressalta: "Tem momentos de mudança de direção política de um país em que as forças políticas não podem agir de forma míope. A visão política míope é você achar que pode dar todos os passos que gostaria."