Islamismo (1) - O monoteísmo entre os árabes
Érica Turci*, Especial para a Página 3 Pedagogia & Comunicação
É comum, nos dias de hoje, ouvir-se falar em árabes e islamismo, ou em muçulmanos, como se essas palavras fossem sinônimos. Na verdade, elas têm significados diferentes, embora estejam diretamente relacionadas entre si. É preciso, portanto, compreender melhor esse relacionamento para desfazer a confusão e entender com mais clareza alguns fatos da atualidade, como os frequentes atentados terroristas cometidos em nome da religião islâmica - apesar de os preceitos do islamismo, como o de várias outras religiões, serem essencialmente pacifistas.
Os árabes são um povo que se desenvolveu na península Arábica, uma vasta região localizada na junção dos continentes africano e asiático. Ao longo da Idade Média, porém, os árabes se expandiram e formaram um grande império. Sua cultura, que tem como principal característica a crença no islamismo, foi então assimilada por diversos outros povos. Vamos acompanhar o desenvolvimento dessa história para compreender porque se pode falar, hoje, na existência de um mundo árabe.
A península Arábica pode ser dividida, mais ou menos, em duas áreas geográficas: a sudoeste encontra-se uma região montanhosa e fértil, irrigada por vários riachos, com bons índices de pluviosidade e banhada pelo mar Vermelho. O restante do território é formado por desertos, onde existem oásis esparsos. É esse o cenário onde os árabes surgiram e se desenvolveram há milênios.
Até meados do século VII, esse povo não se organizava em um Estado centralizado, mas se dividia em dezenas de tribos independentes. Cada uma delas, era composta por clãs (grandes famílias) unidos em torno de um líder (o sheik), escolhido por seus membros. Cada tribo tinha o seu próprio deus e o seu próprio código de ética. Para os árabes, a tribo vinha em primeiro lugar: qualquer ameaça a qualquer um de seus integrantes eram considerada uma ameaça coletiva. Cada membro da tribo tinha a obrigação de cuidar dos outros. Não existia espaço para o individualismo.
A maior parte da população árabe era formada pelos beduínos, pastores e comerciantes nômades que viviam no deserto. Essas tribos em especial, devido à grande dificuldade de sobrevivência numa região inóspita, se enfrentavam constantemente, travando lutas intermináveis pelo controle dos oásis e praticando as razias, ou seja, os saques às outras tribos.
Já os grupos tribais que se estabeleceram na região fértil do sudoeste puderam desenvolver a agricultura, tornaram-se sedentarios e fundaram cidades. No final do século VI, a cidade de Meca (na atual Arábia Saudita) se tornou a mais importante delas. Era controlada pela tribo dos coraixitas, que desenvolveram um rico comércio. Além disso, Meca era também um centro de peregrinação religiosa, pois ali se encontrava a < >Caaba, o mais importante dos templos árabes. Esse templo, em formato de cubo, na época, abrigava os ídolos das várias tribos.
Segundo a tradição, foi construído por Abraão e seu filho Ismael num tempo muito remoto, o que demonstra ser única a origem de árabes e judeus, sendo ambos os povos semitas. Na Caaba era proibido qualquer tipo de hostilidade, o que beneficiava as atividades mercantis, características dos árabes em geral. Tanto os beduínos do deserto quanto os que viviam nas cidades desenvolveram um intenso comércio com as regiões vizinhas: os povos do litoral africano, os persas, os bizantinos e os judeus. Em cada cidade árabe, era comum existir pequenas comunidades de estrangeiros que viviam do comércio internacional.
Maomé e o Islã
Maomé (Muhammad ibn Abdallah) nasceu em Meca, em torno de 570 d.C.. Era membro da tribo dos coraixitas, mas fazia parte de uma família empobrecida, os haxemitas. Tornou-se comerciante e, desde pequeno, conviveu com pessoas de diversas culturas. A tradição diz que somente ao se casar com uma viúva muito rica (Khadija), Maomé pôde ter um conforto material. A partir de então, passou a se retirar para as regiões montanhosas a fim de meditar sobre as diversas culturas e religiões que conhecia. Conta-se que sempre teve um espírito inquieto, era um grande observador, além de questionador.
Em 610, num retiro no Monte Hira, Maomé acordou no meio da noite sentindo uma presença arrebatadora: na sua frente viu um anjo (que mais tarde se identificou como o arcanjo Gabriel) que lhe ordenava: “Recita!”. Maomé pensou que estivesse enlouquecendo. Tentou se livrar daquela presença, mas, para todos os lados que corria, deparava com o anjo dizendo: “Recita!”. Porém, ele não compreendia a ordem do anjo, pois não era um recitador (um tipo comum de adivinho no mundo árabe da época).
O anjo, então, o abraçou fortemente, de modo que o homem sentiu o ar sumir de seus pulmões. Mesmo assim, Maomé resistiu a mais dois abraços. Depois do terceiro, Maomé, embora sem fôlego, abriu seus lábios e começou a falar de coisas sobrenaturais das quais jamais teve consciência. Dessa forma surgiram as primeiras palavras divinas na língua árabe (que se tornou uma língua sagrada, assim como o latim para os católicos ou o hebraico para os judeus):
Recita em nome do teu Senhor que criou;
Criou o homem de um coágulo.
Recita que teu Senhor é Generosíssimo,
Que ensinou através do cálamo,
Ensinou ao homem o que este não sabia!”
A partir dessa ocasião, Maomé passou a comunicar-se com o arcanjo Gabriel e, numa espécie de transe, recitava as palavras divinas para os membros de sua família, que as interpretavam como se Alá (Al- Lá: “o Deus”) estivesse falando através dele. As palavras ditas por Maomé eram poéticas, de uma beleza tão envolvente, de uma verdade tão contundente, que ele passou a ser considerado um profeta e a ter muitos seguidores.
Por mais de três anos, Maomé relutou em defender a crença no Deus único, que o arcanjo Gabriel lhe impunha, pois sabia que as tribos não aceitariam um poder que fosse maior e que pudesse agir além de suas próprias condutas religiosas e éticas. Mas, a cada aparição, o arcanjo era mais enfático: era necessário defender e propagar a crença monoteísta entre os árabes.
Dessa forma surgiu, segundo a tradição, uma nova religião que se chamou Islã (ou islamismo), que em português significa “submissão”. O seguidor do Islã se chama muslin (ou muçulmano), “fiel, crente”. Maomé passou a ser considerado o “selo dos profetas”, ou seja, o que veio depois de todos os profetas judeus e cristãos (Cristo é visto como um profeta pelos muçulmanos), para finalizar a revelação divina.
Enquanto Maomé recitava as palavras de Alá, alguns poucos ouvintes alfabetizados as escreviam. Daí surgiu o livro sagrado do Islã, o Al – qurãn (Corão ou Alcorão), que quer dizer “A Recitação”. (O livro sagrado é considerado de tamanha beleza poética que somente os que compreendem a língua árabe podem perceber seu encantamento e poder de persuasão).
A Hégira e a formação do Estado Árabe
A partir do momento em que Maomé enfatizou o caráter monoteísta de sua religião e a necessidade de os muçulmanos divulgarem as palavras divinas, os coraixitas (elite dominante de Meca) passaram a perseguir Maomé e seus fieis, pois não viam com bons olhos a crença no Deus único do islamismo. Temiam a diminuição das peregrinações religiosas a Meca, assim como dos lucros comerciais que elas proporcionavam.
Em 622 d.C., Maomé recebeu um convite dos habitantes de Yatrib, cidade que ficava a 10 dias de viagem a pé de Meca. Lá duas tribos rivais (aws e khazraj) viviam em conflito há muito tempo, o que as estava destruindo. As duas decidiram pedir orientação a Maomé, que para lá se dirigiu, pacificando-as. Esse episódio é conhecido como Hégira (“emigração”, “fuga”), e marca o início do calendário muçulmano. Em Yatrib, Maomé organizou a primeira grande comunidade islâmica, e a cidade passou a se chamar Madinat al Nabî (ou Medina “cidade do profeta”).
Desse momento em diante, os muçulmanos de Medina tiveram que enfrentar os ataques de diversas tribos politeístas. Uma série de batalhas se sucedeu e várias tribos foram conquistadas e convertidas ao Islã, embora muitas outras tribos tenham se convertido por vontade própria à nova religião.
Em 630, Maomé, a frente de um poderoso contingente militar, conseguiu tomar Meca, pondo fim às guerras intertribais e instaurando o Estado Teocrático Árabe, do qual se tornou o líder político e religioso. O profeta, com suas próprias mãos, destruiu todos os ídolos tribais da Caaba, transformando-a no mais importante templo do Islã.
Para não entrar em atrito com as tradições específicas das diversas tribos, Maomé permitiu que continuassem a segui-las, desde que se comprometessem a cumprir as cinco obrigações do islamismo, o que acabou por unificar todas as tribos em nome de Alá. Assim formou-se a Ummah (Comunidade Muçulmana), o que de certa forma, manteve o principio cultural das tribos árabes: a ummah era mais importante do qualquer indivíduo, todos eram responsáveis uns pelos outros e qualquer um que se colocasse contra as palavras do profeta era considerado um criminoso.
As cinco obrigações islâmicas
1) crer em Alá como deus único e em Maomé como seu último profeta;
2) orar cinco vezes ao dia com a cabeça voltada em direção a Meca;
3) dar esmolas;
4) jejuar no Ramadã (nono mês do calendário islâmico);
5) toda pessoa saudável deve visitar a Caaba (em Meca) pelo menos uma vez na vida.
Veja também
Islamismo (2) O Império Árabe
Saiba mais
ARMSTRONG, Karen. Uma história de Deus. São Paulo: Cia das Letras, 1994.
BARBOSA, Elaine Senise. A encruzilhada das civilizações. São Paulo: Moderna, 1997.
BELTRÃO, Claúdia. Os árabes na Idade Média: os senhores do deserto. São Paulo: FTD, 2000.
HUSSEIN, Mahmoud. O arquiteto do islamismo. In: Revista História Viva. São Paulo: Duetto, nº 64.
PERROY, Edouard. A Idade Média: preeminência das civilizações orientais. In: História Geral das Civilizações (org. Maurice Crouzet). São Paulo: Difusão européia, 1956.