Intertextualidade - Relações entre Fernando Pessoa e Luiz Gonzaga
Qual a relação que poderia existir entre Luiz Gonzaga e Fernando Pessoa?
Aparentemente nenhuma. Aliás, seria mesmo algo inusitado aproximar o velho Lua, o nosso rei do baião, do poeta modernista português Fernando Pessoa, mais precisamente de seu famoso heterônimo Alberto Caeiro.
Pois bem, até pode ser inusitado, mas é possível. Embora sendo artistas figurando em tempo e artes diferentes, com concepções de mundo distintas, ambos tem alguma coisa em comum. Por meio de uma análise, mais precisamente de uma relação intertextual, entre o poema 20 da obra O Guardador de Rebanhos, do mais importante heterônimo de Fernando Pessoa, e a música "Riacho do Navio", de Luiz Gonzaga, podemos estabelecer uma certa proximidade.
Fernando Pessoa foi um poeta que, segundo o crítico e também poeta Otávio Paz, foi "inventor de outros poetas e destruidor de si mesmo". Isto quer dizer que Pessoa, ao criar seus heterônimos, suas máscaras, transitava entre a irrealidade de sua vida cotidiana e a realidade de suas ficções. Sendo assim, Alberto Caeiro não é só mais um dos seus heterônimos; ele é antes de tudo um mestre de todos os outros, inclusive do próprio Pessoa.
Como se sabe, as criações de Pessoa pareciam ter vida própria. E na verdade tinham. Fernando Pessoa informa, em carta a Adolfo Casais Monteiro, que Caeiro nasceu em Lisboa, em 1889; e morreu na mesma cidade em 1915. Viveu quase toda a sua vida na quinta de Ribatejo.
Vejamos essas informações nas palavras do próprio Pessoa: "[Caeiro] nasceu em 1889 e morreu em 1915; nasceu em Lisboa, mas viveu quase toda sua vida no campo. Não teve profissão nem educação alguma [...], de estatura média, e, embora realmente frágil (morreu tuberculoso), não parecia tão frágil como era [...]; louro sem cor, olhos azuis [...], não teve mais educação que quase nenhuma - só instrução primária; morreram-lhe cedo o pai e a mãe, e deixou-se ficar em casa, vivendo de uns pequenos rendimentos. Vivia com uma tia velha, tia-avó".
Suas obras são: O Guardador de Rebanhos (1911-1912), Pastor Amoroso e Poemas Inconjuntos (1913-1915). O professor Massaud Moisés afirma que, ao percorrer os dados biográficos e os poemas, o leitor não tem como esquivar-se à impressão de que, uma vez mais, a demoníaca lucidez de Fernando Pessoa inventa uma vida coerente com a obra que compõe. Para Massaud, Pessoa inventava a biografia como se criasse um outro momento poético, de modo a haver, entre a existência imaginária e os versos fingidos, cristalina simetria.
Já Luiz Gonzaga foi um músico e compositor popular brasileiro. Nasceu em 1912 e faleceu em 1989. Compôs alguns dos maiores clássicos do nosso cancioneiro. Deixou excelente obra musical. Passou para a posteridade como o rei do baião, e como um dos maiores representantes da cultura nordestina, pois mesmo tendo deixado sua terra natal, Exu, no sertão de Pernambuco, para ganhar a vida no sul do país, jamais esqueceu suas raízes. Sua obra fala por si mesma.
A música "Riacho do Navio", composta em parceria com o compositor, poeta e folclorista brasileiro Zé Dantas, em 1955, é um exemplo disso. E é nela, como já dissemos, que vemos a proximidade do rei do baião com a visão de mundo de Alberto Caeiro no poema 20 de O Guardador de Rebanhos. Vejamos os dois textos:
Riacho do Navio
Corre pro Pajeú
O rio Pajeú vai despejar
No São Francisco
E o rio São Francisco
Vai bater no mei' do mar
O rio São Francisco
Vai bater no mei' do mar
Ai! Se eu fosse um peixe
Ao contrário do rio
Nadava contra as águas
E nesse desafio
Saía lá do mar pro
Riacho do Navio
Eu ia direitinho pro
Riacho do Navio
Pra ver o meu brejinho
Fazer umas caçadas
Ver as pegas de boi
Andar nas vaquejadas
Dormir ao som do chocalho
E acordar com a passarada
Sem rádio e sem notícia
Das terras civilizadas
Sem rádio e sem notícia
Das terras civilizadas
Riacho do navio... riacho do navio...
Riacho do Navio...
Tando lá não sinto frio.
XX
O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,
Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia
Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.
O Tejo tem grandes navios
E navega nele ainda,
Para aqueles que veem em tudo o que lá não está,
A memória das naus.
O Tejo desce de Espanha
E o Tejo entra no mar em Portugal.
Toda a gente sabe isso.
Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia
E para onde ele vai
E donde ele vem.
E por isso, porque pertence a menos gente,
É mais livre e maior o rio da minha aldeia.
Pelo Tejo vai-se para o Mundo.
Para além do Tejo há a América
E a fortuna daqueles que a encontram.
Ninguém nunca pensou no que há para além
Do rio da minha aldeia.
O rio da minha aldeia não faz pensar em nada.
Quem está ao pé dele está só ao pé dele.
Natureza x civilização
Alberto Caieiro é poeta "natural" ou que se pretende afinado com a Natureza, como se estivesse perante ela sem nenhum pensamento, sem a lógica do homem citadino e civilizado, diz Massaud. O cântico de exaltação ao anônimo rio de sua aldeia em detrimento ao famoso Tejo é notório no poema 20 como um todo, mas torna-se mais evidente nos seguintes versos:
O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,
Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia
Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.
...o Tejo entra no mar em Portugal
Toda a gente sabe isso.
Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia
E para onde ele vai.
Nesses versos acima, fica bastante evidente que Caeiro, como se disse, poeta natural, procura afastar-se da noção de civilização representada aqui pelo rio Tejo, que, através das naus conduziu os portugueses a novos mundos, levando o legado de sua civilização. Caeiro prefere exaltar o anônimo rio de sua pequena aldeia, cujo curso poucos sabem onde vai dar. Por isso é mais próximo da natureza e das coisas simples da vida.
Igualmente, na música de Luiz Gonzaga há a exaltação das belezas naturais de um pequeno rio, o riacho do Navio, representante da natureza mais simples e sertaneja em detrimento da sofisticada civilização. A negação desse modo de vida sofisticado é vista nos seguintes versos:
Pra ver o meu brejinho
Fazer umas caçadas
Ver as pegas de boi
Andar nas vaquejadas
Dormir ao som do chocalho
E acordar com a passarada
Sem rádio e sem notícia
Das terras civilizadas
Sem rádio e sem notícia
Das terras civilizadas.
O autor enuncia, um pouco antes, que iria contrariar o curso natural da migração dos peixes, saindo do mar, passando pelos rios São Francisco e Pajeú para chegar, assim, ao riacho do Navio, e ali, na sua região, fazer as caçadas, ver as pegas de boi etc., ou seja, estar no mais completo distanciamento da civilização.
Além das temáticas natureza versus civilização, cultura regional versus cultura cosmopolita, simplicidade versus sofisticação, visivelmente marcadas em ambos os textos, nota-se também, conciliada à literatura, uma bela lição de geografia, dada, respectivamente, pelos compositores e pelo poeta.
Caeiro nos faz saber que o Tejo desce de Espanha e entra no mar depois de passar por Portugal. E ainda que, pelo Tejo vai-se para o mundo e que para além dele há a América. Gonzagão nos diz que o riacho do Navio corre em direção ao rio Pajeú. O rio Pajeú, por sua vez, deságua no rio São Francisco, por ser afluente deste. E, finalmente, o Velho Chico vai bater no meio do mar, isto é, vai desaguar no Oceano Atlântico, a sua foz.
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