Intertextualidade - Textos "conversam" entre si
Alfredina Nery, Especial para a Página 3 Pedagogia e Comunicação
Para entender o que é o conceito de "intertextualidade", um exemplo divertido. O jogo do "não confunda":
- Não confunda "bife à milanesa" com "bife ali na mesa",
- Não confunda "conhaque de alcatrão" com "catraca de canhão",
- Não confunda "força da opinião pública" com "opinião da força pública".
Como se vê, é possível elaborar um texto novo a partir de um texto já existente. É assim que os textos "conversam" entre si. É comum encontrar ecos ou referências de um texto em outro. A essa relação se dá o nome de intertextualidade.
Para entender melhor a palavra, pense em sua estrutura. O sufixo inter, de origem latina, se refere à noção de relação (entre). Logo, intertextualidade é a propriedade de textos se relacionarem.
Intertexualidade na poesia Veja como Chico Buarque de Holanda, um dos mais importantes compositores brasileiros, utiliza a intertextualidade em uma canção sua. Em "Bom Conselho", ele faz referências a provérbios populares.Provérbios populares Canção de Chico Buarque “Uma boa noite de sono combate os males”
“Quem espera sempre alcança”
“Faça o que eu digo, não faça o que eu faço"
“Pense, antes de agir”
“Devagar se vai longe”
“Quem semeia vento, colhe tempestade”Bom Conselho
Ouça um bom conselho
Que eu lhe dou de graça
Inútil dormir que a dor não passa
Espere sentado
Ou você se cansa
Está provado, quem espera nunca alcança
Venha, meu amigo
Deixe esse regaço
Brinque com meu fogo
Venha se queimar
Faça como eu digo
Faça como eu faço
Aja duas vezes antes de pensar
Corro atrás do tempo
Vim de não sei onde
Devagar é que não se vai longe
Eu semeio vento na minha cidade
Vou pra rua e bebo a tempestade
(Chico Buarque, 1972)Chico Buarque inverte os provérbios, questionando-os e olhando-os sob outro ângulo, atribuindo-lhes novos sentidos.
Há vários exemplos de intertextualidade na literatura. Veja, a seguir, como Ricardo Azevedo brinca com o famoso poema Quadrilha, de Carlos Drummond de Andrade.
Quadrilha Quadrilha da sujeira João amava Teresa que amava Raimundo
que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili que não amava ninguém.
João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento,
Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia, Joaquim suicidou-se e
Lili casou-se com J. Pinto Fernandes que não tinha entrado na história.
(Carlos Drummond de Andrade)João joga um palitinho de sorvete na
rua de Teresa que joga uma latinha de
refrigerante na rua de Raimundo que
joga um saquinho plástico na rua de Joaquim que joga uma garrafinha velha na rua de Lili.
Lili joga um pedacinho de isopor na
rua de João que joga uma embalagenzinha
de não sei o quê na rua de Teresa que
joga um lencinho de papel na rua de
Raimundo que joga uma tampinha de
refrigerante na rua de Joaquim que joga
um papelzinho de bala na rua de J.Pinto
Fernandes que ainda nem tinha entrado na história.
Ricardo Azevedo
(”Você Diz Que Sabe Muito, Borboleta Sabe Mais”, Fundação Cargill)Enquanto um texto trata do amor não correspondido, por meio da comparação com uma dança (quadrilha), o outro critica o mau hábito de jogar lixo na rua - e mostra como as pessoas prejudicam as outras.
A intertexualidade também é um recurso comumente utilizado pelas crônicas de jornal. Abaixo, veja como José Roberto Torero utiliza uma frase famosa dita por um personagem de Shakespeare. A frase quer dizer, em poucas palavras, que há muita coisa na vida que não compreendemos.
Shakespeare Deuses do futebol: Urucubaco “Há mais coisas entre o céu
e a terra do que supõe a
nossa vã filosofiaOlímpico leitor, divinal
leitora, há mais coisas entre
o céu dos deuses e a terra
do futebol do que sonha a
nossa vã crônica esportiva.
Determinadas situações do
jogo e certas fases pelas
quais os times passam não
são, como pensam alguns,
obra do acaso. Ao contrário,
são uma manifestação da
vontade de seres
superiores, seres que
controlam a nossa vida
desde o dia em que o Caos
gerou a Noite.
(trecho de crônica de José Roberto
Torero, Folha de S.Paulo, em 17/9/
02-pag.D3)
Tome-se um homem feito de nada
Como nós em tamanho natural
Embeba-se-lhe a carne
Lentamente
De uma certeza aguda, irracional
Intensa como o ódio ou como a fome.
Depois perto do fim
Agite-se um pendão
E toque-se um clarim
Serve-se morto.(Reinaldo Ferreira em "Portos de Passagem" - João Wanderley Geraldi, São Paulo: Martins Fontes, 1991)
Ao falar do como se faz um herói, o poeta usa elementos de uma receita de cozinha. Analise, por exemplo:
- os verbos que indicam ordem (imperativo): "Tome-se", "Embeba-se-lhe", "Agite-se", "toque-se", "Serve-se";
- o advérbio de modo: "lentamente", ou seja, o "modo de fazer", próprio das receitas culinárias;
- em geral, a receita de cozinha termina com a expressão: "Serve-se... (gelado ou frio ou quente etc.). O último verso do poema retoma essa forma da receita, mas o faz de uma maneira realista ou crítica, isto é, um herói "Serve-se morto."
O poema de Reinaldo Ferreira faz uma referência "implícita" às receitas culinárias - a referência não é clara, direta, a nenhuma receita em específico, mas o modo como o texto é construído lembra as tais receitas.
Para terminar, outro exemplo interessante, também de Drummon. Ele fala da "medicalização" do mundo moderno, por meio da criação de palavras que lembram os nomes de diversos remédios...Receituário Sortido
Calma.
É preciso ter calma no Brasil
calmina
calmarian
calmogen
calmovita.Que negócio é esse de ansiedade?
Não quero ver ninguém ansioso.
O cordão dos ansiosos enfrentemos:
aspiran!
ansiotex!
ansiex ansiax ansiolax
ansiopax, amigos!