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Tradução - Não basta transpor palavras de uma língua a outra

Heidi Strecker, Especial para a Página 3 Pedagogia & Comunicação

Graças à tradução podemos ler, em português, obras escritas em espanhol, inglês, italiano, etc. O trabalho de tradução não é apenas o de encontrar as palavras correspondentes de uma língua em outra.

Além de achar termos equivalentes, é necessário, muitas vezes, fazer adaptações que conservem a musicalidade, o humor ou outras cracaterísticas do texto original.

Veja, por exemplo, diferentes versões para o poema de Edgar Allan Poe, "O corvo":

Versão original:
 

Once upon a midnight dreary, while I pondered, weak and weary,
Over many a quaint and curious volume of forgotten lore –
While I nodded, nearly napping, suddenly there came a tapping,
As of someone gently rapping, rapping at my chamber door.
“This some visitor”, I muttered, “tapping at my chamber door –
Only this and nothing more”.

 

Esse poema assustador foi escrito no século 19. O ritmo do poema (tamanho das palavras, posição das sílabas tônicas, escolha das rimas) completam o seu tom assustador. Poe aproveita os sons das palavras para criar um clima de mistério e suspense.

Veja uma tradução do poema, ao português, feita de maneira simples, apenas traduzindo as frases à nossa língua:

Tradução simples
 

Era uma vez uma meia-noite terrível, enquanto eu refletia, fraco e cansado,

Sobre um estranho e curioso livro, a respeito de costumes esquecidos -

Enquanto eu cabeceava, qause cochilando, ouvi de repente um pancadinha

Como se fosse alguém batendo suavemente, batendo na porta do meu quarto.

Deve ser uma visita", eu murmurei, "batendo na porta do meu quarto -

isso e nada mais".
 

Essa tradução nos permite saber do que o poema original fala. Mas o significado original também depende de como o poeta combina e usa os sons, as rimas, os ecos, as palavras. Veja algumas entre as muitas coisas que perdemos na tradução:
 

  • o clima sombrio e mórbido do ambiente,
  • o ritmo que sugere o fato de o Eu poético estar quase dormindo,
  • os sons que reproduzem o barulho das batidas na porta,
  • a expectativa pela chegada do corvo.

    O tradutor deve fazer um esforço para recriar a atmosfera do poema, além de traduzir as palavras do inglês para o português. Vejamos como Machado de Assis resolveu o problema.

    Tradução de Machado de Assis

    Em certo dia, à hora, à hora
    Da meia-noite que apavora,
    Eu caindo de sono e exausto de fadiga,
    Ao pé da minha lauda antiga,
    De uma velha doutrina agora morta,
    Ia pensando, quando ouvi à porta
    Do meu quarto um soar devagarinho,
    E disse estas palavras tais:
    “É alguém que me bate à porta de mansinho,
    Há de ser isso e nada mais”.


    Cada tradutor vai transpor o texto original de uma maneira. Veja a solução dada pelo poeta português Fernando Pessoa ao mesmo texto:

    Numa meia-noite agreste, quando eu lia, lento e triste,
    Vagos, curiosos tomos de ciências ancestrais,
    E já quase adormecia, ouvi o que parecia
    O som de alguém que batia levemente a meus umbrais.
    “Uma visita”, eu me disse, “está batendo a meus umbrais.
    É só isto, e nada mais”.


    Versões famosas Como você vê, grandes escritores dedicam-se também à tradução. É uma maneira de criar uma nova obra de arte sobre um texto já existente. Ou seja, a tradução deixa de ser apenas uma versão, e se torna uma outra obra de arte.

    Veja o que aconteceu com o poema "Lua Cheia", da poetisa grega Safo (século 7 a.C.), traduzido, a seguir, pelo tradutor Pedro Alvim, e, mais tarde, por Haroldo de Campos:

    As estrelas ao redor
    da lua bela
    longe o brilho escondem
    quando,
    plena de fulgor,
    mais ela
    se entorna
    cheia
    pela terra.
     
           
    Veja, agora, a versão de Haroldo de Campos:

    em torno a Silene esplêndida
    os astros
    recolhem sua forma lúcida
    quando plena ela mais resplende
    alta
    argêntea