Escola não é "ilha de paz", diz ex-diretor sobre como enfrentar a violência
No dia 3 de janeiro, Braz Nogueira, 64, deixou de bater ponto na rede municipal de ensino de São Paulo. Foram mais de 39 anos de serviço público, 20 deles dedicados à Escola Municipal Campos Salles, em Heliópolis, uma das maiores favelas de São Paulo.
Lá, o então diretor aproximou a escola da comunidade, deu autonomia e responsabilidades aos alunos, enfrentou toques de recolher e até conversou com traficantes. Com diálogo, Nogueira encarou o desafio de combater, entre outros problemas, a violência escolar.
A instituição usa modelo inspirado na Escola da Ponte, criada pelo educador português José Pacheco, que não usa provas e é interdisciplinar. O projeto, implantado durante a gestão de Nogueira, vai ser mantido mesmo com sua ausência.
Leia a seguir, a entrevista que o diretor agora aposentado concedeu ao UOL:
UOL - Qual era o cenário quando o sr. entrou na escola Campos Salles pela primeira vez?
Braz Nogueira - Quando eu cheguei lá, em novembro de 1995, tinha de cinco a seis brigas diárias, de arrancar sangue do outro, que ocorriam na frente da escola. Aquilo era um espetáculo. Não era só aluno da escola, existiam verdadeiras redes de intrigas, plateias incitando e fofocando. E a gente fazia papel de palhaço. Tinha essa coisa interna, um aluno ríspido, você colocava a mão no aluno e ele dizia: “Tira a mão de mim!”. Além disso, era a época das chacinas e óbitos. Era uma violência muito grande.
Quando foi para a Campos Salles, já sabia que a realidade era essa?
Eu não sabia o nível da violência que eu ia encontrar. Quando eu ia escolher, tinha uma lista com 14 escolas. Eu estava na fila e uma pessoa passou e perguntou: “Deixa eu ver a sua lista de escolas?”. A primeira era a Campos Salles. Aí a pessoa falou: “Essa primeira você não escolhe de jeito nenhum, é escola de marginal, bandido, favelado. Se você for para lá, vai sofrer demais”. Mas chegou a minha vez e eu escolhi a escola por dois motivos: primeiro, eu morava ali perto e podia ir a pé; segundo, e o principal motivo, é que a origem daquelas famílias é semelhante à da minha família. Então, eu não estaria lá no meio de baderneiro, favelado, marginal, estaria entre os meus.
O sr. já foi para escola para ser diretor?
Sim, e as duas primeiras horas dentro da escola foram bem doídas, porque apareceram três grupos brigando pelo poder: um articulado com a secretária da escola, que era a maior autoridade ali na época, um grupo com aquela que tinha sido diretora até duas horas antes e um outro que estava com uma professora. Quando eu percebi isso, o que me deixou mais intrigado é que não existia aluno na fala desse povo, eles estavam preocupados só com briguinhas internas.
Nesse momento, eu fui salvo por duas ideias: primeiro, de que tudo passa pela educação, não é pela escola, ela é importante, mas não tem o monopólio disso, não adianta ela querer resolver isso sozinha; e a outra ideia, que deu uma originalidade para o projeto da Escola Campos Salles, é que a escola tem que ser um centro de liderança na comunidade e lutar não só pela melhoria do ensino, mas para a efetivação dos direitos das pessoas.
O que o sr. fez então?
O que me salvou foram essas duas ideias. Eu coloquei na minha cabeça que, a partir daquele momento, eu ia detectar as lideranças propositivas entre os alunos, os pais, os professores e procurar lideranças da comunidade, para que eles aceitassem essas duas ideias e, junto comigo, transformassem a escola. Os casos de brigas, a gente tratou sempre diretamente. Por exemplo, uns dois ou três anos logo que eu cheguei, um professor desceu bravo dizendo: “Braz, eu estou indo na delegacia fazer um BO, porque eu fui ameaçado de morte”. Eu falei: “Você foi ameaçado de que jeito?”. “O aluno disse: ‘Depois é encontrado por aí morto, não sabe por quê”. Eu falei: “Não resolve você ir na delegacia, mas é seu direito”. Ele foi e eu, no mesmo dia, fui na casa do aluno.
Cheguei a um local meio estranho, apertei a campainha e uma pessoa perguntou: “O que você quer?”. Eu disse: “Eu sou o Braz, da Escola Campos Salles”. Tinha uns caras lá, era meio estranho, mas eu pensei: “Ele ameaçou um professor de morte e eu quero saber até que ponto isso é real”. Eu sei que muitos são valentões dentro da escola, mas, na hora que saem e vão procurar emprego, negam que são de Heliópolis. Aí entrei, ele veio e falei: “O que te levou a falar isso? Qual é a sua intenção? Você sabe os efeitos disso? O professor passa pela escola, depois vai embora e diz ‘é um bando de favelado, de marginal, de baderneiro’. É essa imagem que vocês querem para a escola?”. A conversa ficou legal e eu fui embora.
Daí, quando eu estava andando em uma viela, duas senhoras falaram: “Você é maluco, seu Braz, ali é uma boca”. O que eu estou te mostrando é que, se existe um problema, você se aproxima, não vira as costas, é dessa forma que a gente começou a trabalhar a questão da violência.
Que tipo de obstáculos o sr. enfrentou para adotar esse modelo?
Muitos. Uma ideia que eu levei logo no início é que, se a escola fosse uma maravilha e todo aluno se respeitasse, quem ia ganhar com isso eram eles. Eu dizia: “Se vocês destruírem a escola e botarem ela no chão, eu vou ganhar sem trabalhar até eles encontrarem outra escola para mim”.
Em 2008, por exemplo, foram tiradas as paredes internas da escola, transformamos 12 salas de aula em quatro grandes salões. Nesse ano nasceu uma comissão mediadora dentro de cada salão, que tinha a principal tarefa de cuidar da convivência dos alunos, porque o adulto não consegue, por meio de punição, com moralismo, ter o aluno do jeito que ele quer, não existe isso. Quando não tinha como contestar o autoritarismo, a punição funcionava, mas hoje não funciona. Hoje o aluno tem que ser encarado como um aliado.
Teve um pai de dois alunos, um era uma graça, mas o irmão dele era terrível. A gente chamava a família e piorava a situação, porque o pai dava mais trabalho do que o moleque, me xingava, xingava coordenador pedagógico. Um dia, estou lá na escola e saquei que esse cara estava lá e passou uma comissão. Depois de uma hora e meia mais ou menos, saiu o pai de cabeça baixa, com o rabinho entre as pernas. Eu nunca vi o cara tão humilde quanto naquele dia. E foram os alunos.
Como essa relação foi construída?
Teve um toque de recolher em 2009, o último que paralisou Heliópolis. Quando tinha toque de recolher, à noite fechavam todas as escolas da região, a única que funcionava era a Campos Salles. Eu tinha uma responsabilidade, não podia deixar a escola fechar, era uma questão de resistência, porque a pressão era muito grande, de todos os lados. Tinha gente ligando: “Você não tem medo de colocar a vida das pessoas em risco?”. Aí eu perguntava: “Você é traficante ou é da polícia?”. “Eu não sou nada disso!”. “Então, vai tomar no c*”, e desligava.
Em uma quarta-feira, começou um tumulto. Então chamei todo mundo para o pátio, mais de 400 alunos. Eu botei um banquinho no meio, nem tinha microfone, e falei 50 minutos sem censura, sem pensar em nenhuma consequência, e terminei assim: “Em nome da nossa história, do nosso projeto, vocês vão voltar para a sala de aula, porque aqui na Campos Salles, a aula é normal, porque quem manda aqui somos nós, eu e vocês, não são os traficantes, não”. Eu falei isso com traficante me olhando, conhecido, que dentro da escola não dava trabalho nenhum.
Eu voltei para a minha sala, já estava quase na hora da escola fechar e me deu um vazio no peito. Eu pensava: “Com que cara eu volto pra cá amanhã?”. Nesse momento, chegaram seis alunos do grêmio e um deles disse: “Braz, a gente veio falar que você pode ir para a sua casa sereno e tranquilo, que o nosso projeto não vai morrer, porque nós não vamos deixar”. A vida voltou plena e aprendi, naquele dia, uma das maiores lições da minha vida: ninguém é líder a todo momento, a liderança migra e o líder é aquele que mantém a esperança do grupo. Naquele dia, o líder da escola foi um menino de 14 anos, que manteve inclusive a minha esperança.
Naquela época, tinha 12 conjuntos de chaves distribuídos na comunidade de Heliópolis, gente de igreja evangélica, de igreja católica, presidente do conselho da escola, união de moradores. Tudo isso faz parte da construção de uma cultura de paz, de construir um espaço que evita um monte de coisas desagradáveis. Como vão acontecer coisas ruins em uma escola dessas?
Tem como uma escola que fica em um bairro violento ser uma ilha de paz?
Não, não tem. Aliás, desde o início a gente começou a participar da vida da comunidade. E, no ano de 2008, teve uma assembleia com mais de 400 moradores, quando foi votado que os princípios que iriam transformar Heliópolis em uma comunidade de aprendizagem seriam os princípios da Escola Campos Salles --aquelas duas ideias que falei no início. Em 2005, foram acrescentados mais três: o da autonomia, da responsabilidade e da solidariedade, que são os princípios da Escola da Ponte. A partir de 2008, esses cinco princípios passaram a nortear a transformação de Heliópolis em um bairro educador.
Não existe uma ilha de paz, existe a construção de uma cultura de paz que a escola começou e hoje essa é uma tarefa da comunidade e da escola. Se você for ver, as escolas que tiveram sucesso no combate à violência não acabaram com a violência, mas tiveram outra forma de tratá-la. Hoje o que nós temos, quando se fala em violência, é uma histeria.
O maior trabalho da escola Campos Salles contra a violência foi que tinha uma coisa do imaginário que paralisava as pessoas dentro de Heliópolis, e a escola ajudou a redimensionar, a colocar a violência no seu devido lugar e não dar mais margem para um imaginário que vai castrando e paralisando as pessoas.
É o que acontece quando tem toque de recolher, não é?
Sim, é uma coisa que cria uma histeria, que é boa para os traficantes, mas às vezes eles não estão nem sabendo. Uma vez, na época do PCC, teve um problema e eu estava preocupado com aquele clima que tomava conta de todo mundo. Eu encontrei os caras e disse: “Que diabos está acontecendo? Tem fundamento isso?”. E eles: “Braz, não tem. Escola pode funcionar, ninguém vai interferir em escola”.
Mas, às vezes, acontecia alguma coisa, como o dia em que roubaram os computadores [em 2002]. Um cara que estava preso saiu, não participou dessa construção com a comunidade e foi lá roubar. [Três dias depois, os computadores reapareceram na escola.] Você não pode baixar a guarda, porque o meio é violento.
Pelo respeito que tive à comunidade de Heliópolis, sempre me aproximei de todos os problemas, conversei com todo mundo, falei para muito traficante: “Eu não tenho problema com vocês. Eu não sou usuário, eu não trafico, não vou disputar mercado com vocês, eu não sou dedo-duro”. E se todo mundo soubesse disso, acabava 80% dessa neurose. Tinha momentos em que pintava, ao longo desses 21 anos, um certo medo. Quando isso acontecia, eu ia para a rua, andava por Heliópolis, passava em frente às bocas e voltava tranquilo.
O medo então é alimentado pelo distanciamento da escola com a comunidade?
Esse é um dos graves problemas da escola hoje: ela não se mistura, ela não respeita a comunidade em que está inserida. Por que a escola sofre em muitos lugares? Porque ela quer ser uma coisa limpa, higiênica, não quer se contaminar. A solução é se misturar e, juntos, reativar as forças educativas que existem em qualquer lugar.
Hoje existe uma ideia de que botou a criança dentro da escola, não pode acontecer nada. O ser humano é ser humano em qualquer lugar, se ele é violado dentro da escola, é a mesma violação quando acontece em casa. É uma pena que a escola não chame os alunos para ajudar a resolver o problema da violência e da disciplina.
Qual é o papel do Estado na solução desse problema?
Eu acho que deveria focar nas experiências pontuais que estão esparramadas pelo Brasil e potencializar ao máximo e oferecer, não modelos, mas esperanças. O papel do Estado é ver, entre as experiências pontuais, aquelas que são realmente coerentes e tentar incentivar, levar os outros a se inspirar para também resolver essa questão na sua região. As políticas públicas, muitas vezes, são feitas para inglês ver. Têm que nascer de baixo, têm que ter lideranças e pessoas preocupadas com as relações naquele local.
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