1ª diretora trans em SP se diz felizarda por não ter sofrido discriminação
"Diretora, como a senhora está bonita hoje", diz uma aluna do 1º ano do ensino fundamental à educadora que caminha pelo pátio da Escola Estadual Santa Rosa de Lima, na zona sul de São Paulo.
É assim, com admiração e respeito, que as crianças recebem diariamente Paula Beatriz de Souza Cruz, 47, educadora há quase 30 anos e, desde 2013, a primeira diretora transexual da rede estadual de educação de São Paulo.
Apaixonada pela alfabetização, Paula virou professora aos 18 anos, é formada em letras e pedagogia e hoje dirige a unidade que tem 960 alunos do 1º ao 5º ano do ensino fundamental e 70 professores e funcionários.
"Desde criança, queria ser professora. Eu me lembro das minhas quatro primeiras professoras do ensino fundamental, dos anos iniciais. Elas me inspiraram porque tinham aquele carinho com os alunos", diz.
Já era diretora da Santa Rosa de Lima quando, em 2005, iniciou o processo que culminou, dois anos depois, em cirurgias para a mudança de sexo e para usar um nome feminino. "Eu acho que as pessoas têm que ser elas próprias para viver melhor. Eu procurei o melhor para mim, porque eu estava amarrada, presa, não era eu na verdade."
Foi atrás de acompanhamento médico e psicológico e, aos poucos, começou a contar aos familiares, amigos, professores e funcionários da escola sobre a sua decisão.
Deixou para trás aquele que chamou de seu "irmão gêmeo" para, em dezembro de 2007, ser a Paula diariamente. "Para mim, eu tinha um irmão gêmeo, porque a minha moral ética, meu caráter, isso já estava formado", conta.
"Algumas amigas falam: 'Por que você não bota fogo nessas fotos antigas?’. Eu digo que não, porque faz parte da minha história. Foi ele que se formou em letras, ingressou no serviço público, faz parte e eu não posso esconder isso", diz ela, que, contudo, prefere não citar o nome antigo.
Essa indiferença, que existe, eu não sofri. Sabemos que vivemos em uma sociedade machista e sexista, mas eu nunca sofri discriminação. Sou uma felizarda
Paula Beatriz de Souza Cruz, diretora de escola estadual em SP
"No momento em que eu ia fazer a cirurgia, para não dar aquele impacto, fui para a supervisão de ensino. Eu achei muito bom, porque, além de ter sido um aprendizado, não fui colocada de canto. Fui responsável pelo Saresp, pelo Programa Escola da Família. Isso foi muito significativo para mim naquele momento", diz.
Seis anos depois da exteriorização, como ela se refere ao processo, deixou a supervisão de projetos para reassumir o antigo cargo como diretora. "Quando eu retornei para a escola, já Paula, não houve impacto negativo", conta. "Essa indiferença, que existe, eu não sofri. Não que isso seja o comum, porque nós sabemos que ainda vivemos em uma sociedade machista e sexista, mas eu particularmente nunca sofri nenhuma discriminação, nenhum preconceito ou ato vexatório que me constrangesse no meu trabalho, na rua ou em qualquer lugar. Eu sou uma felizarda."
Entre amigos e familiares, Paula diz que a decisão foi recebida sem surpresa. "‘Até que enfim’ foi a frase que eu ouvi da maioria", conta.
A única resistência veio da mãe, não por preconceito, mas porque temia pela segurança da filha. "Ela acompanha muito os jornais, sabe como travestis e transexuais são agredidas, então ela ficou com medo", diz a filha caçula.
Brava, mas sem perder o lado mãezona
Fazem parte do dia a dia de Paula à frente da escola os telefonemas de pais em busca de vagas, a resolução de conflitos entre alunos e o apoio dos professores nas experiências em sala de aula. "Como diretora, sou brava, porque a escola tem que um comando, uma ordem. Mas, ao mesmo tempo, sou amiga, aconselhadora, sou uma mãe de todos". Shortinho, por exemplo, está proibido na escola.
A inspiração para o comando com mão firme, diz ela, vem da própria experiência como aluna. "Eu ia muitas vezes para a diretoria, eu era um terror, por isso sei lidar com os terrores, eu era danada. Na minha época, quando tinha muito julgamento, ficavam me constrangendo [hoje conhecido por bullying] e eu sentava a mão, porque eu sou capoeirista. Eu ia muito para a diretoria. Eu sempre saía batendo".
A parte "mãezona", por outro lado, manifesta-se toda vez que alguém bate à porta da sua sala em busca de apoio. "Nesses 30 anos de carreira, são tantos momentos de alegria, mas o que mais me marcou foi quando uma mãe, que já reconhecia que o seu filho era homossexual, veio pedir auxílio de que como ela poderia proceder para a educação dele."
60% dos jovens LGBT se sentem inseguros na escola
Segundo dados da Pesquisa Nacional sobre Estudantes LGBT e o Ambiente Escolar, 60,2% dos jovens entre 13 e 21 anos identificados como LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais) sentem-se inseguros na escola por conta da sua orientação sexual. Ainda de acordo com o estudo, 72,6% já sofreram agressões verbais e 24,6% foram vítimas de violência física no ambiente escolar.
A saída para combater violências e a discriminação, defende a diretora, é a formação dos educadores para que a escola discuta o assunto de forma natural e cotidiana. "Eu fico triste com a supressão da palavra gênero dos planos de educação. Infelizmente, há um conservadorismo e um fundamentalismo por parte de alguns representantes do povo que esquecem de ver o mundo pela igualdade e acabam contribuindo para a homofobia, a transfobia, a lesbofobia."
Outra pesquisa, "Juventudes na Escola, Sentidos e Buscas: Por que Frequentam?", mostrou que 19,3% dos alunos de escola pública entre 15 e 29 anos não gostariam de ter um colega de classe travesti, homossexual, transexual ou transgênero.
Os termos "identidade de gênero" e "orientação sexual" também foram retirados, em abril deste ano, da base nacional curricular proposta pelo Ministério da Educação.
"Eu vejo que as crianças não têm isso. Eu nunca tive um caso de atender na diretoria um aluno que tenha chamado o outro de ‘bicha’ ou ‘sapatão’. As professoras estão sempre discutindo essa temática, até mesmo porque nós temos aqui na escola crianças que são filhos de duas mães, de dois pais", afirma.
Militante dos direitos LGBTs, Paula se tornou inspiração para transexuais e travestis que deixaram a escola.
"Quando elas veem que eu sou diretora, professora, pensam: ‘Então é possível’. Eu vi que muitas voltaram a estudar", diz. "Isso é representatividade e eu tento não me tornar invisível, porque nós existimos e temos que ser respeitadas com dignidade. Não se trata de uma doença. Se eu fosse doente, não estava aqui em uma escola trabalhando. Se eu tivesse problemas psíquicos, não conseguiria comandar 960 crianças, 70 professores, funcionários, fazer toda a parte burocrática."
Sobre o projeto Escola sem Partido, Paula defende que a escola seja apartidária, mas que haja discussão sobre política. "Estamos em um país democrático, então a gente tem que abrir esse leque das discussões referente a todos os partidos e dar uma formação para que as crianças e jovens procurem ler sobre os partidos para poder ir às urnas. Política tem que ser sim discutida na escola."
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