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Redação com tema polêmico? Entenda limite entre direitos humanos e liberdade de expressão

Igor do Vale/Futura Press/Estadão Conteúdo
Imagem: Igor do Vale/Futura Press/Estadão Conteúdo

Leonardo Martins

Do UOL, em São Paulo

01/09/2017 04h00Atualizada em 05/10/2017 14h21

Estabelecido por lei, os direitos humanos registram as regras para o convívio harmônico e respeitoso na sociedade. Na redação do Enem (Exame Nacional do Ensino Médio), desrespeitar esses direitos durante a construção do texto resulta em anulação da nota e pode complicar a vida do estudante.

Os professores consultados pelo UOL concordam com esse critério de seleção utilizado pelo MEC (Ministério da Educação) e endossam que, além de mostrar que não se adequam aos padrões do processo seletivo, os alunos que agridem os direitos humanos na redação incitam a violência.

Para Gabriela de Araújo, coordenadora de redação da escola Poliedro e ex-corretora do Enem, essa exigência mostra o tipo de aluno que as universidades federais querem sentados em suas salas de aula.

“É a escolha de um critério. Essas universidades querem alunos dispostos a respeitar a dignidade dos outros, conviver com as diferenças, viver em harmonia”, afirma a docente, que diz se surpreender com as reações negativas de pessoas que são contra anulação da nota em caso de desrespeito aos direitos humanos.

“Você pode se posicionar com uma visão diferente da coletânea da prova, mas a pessoa não pode dizer que xingar ou se posicionar de forma agressiva contra uma outra pessoa é liberdade de expressão. Há um limite entre liberdade de expressão e crime. Os direitos humanos protegem seres humanos de outros seres humanos, respeitar isso na redação é o mínimo que se espera de um aluno”, explica Araújo.

Nota zero

Desde 2013, após a publicação das Diretrizes Nacionais para a Educação em Direitos Humanos pelo MEC, o edital do exame torna obrigatório o respeito aos direitos humanos, sob a pena de nota zero.

Essa decisão influenciou os temas que foram cobrados nas redações dos anos seguintes, que exigiram uma reflexão maior sobre os problemas de convivência social do Brasil. Veja os temas dos últimos três anos:

2014: A publicidade infantil em questão no Brasil

2015: A persistência na violência contra a mulher no Brasil

2016: Caminhos para combater a intolerância religiosa no Brasil

Segundo levantamento do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira), em 2014, 955 pessoas estrearam a nova diretriz com redações anuladas por ferir os direitos humanos.

No ano seguinte, onde o tema sobre a violência contra a mulher exigia sensibilidade do aluno, o número de anulações saltou 941%, subindo para 9.942 casos. Na última prova do Enem, em 2016, foram registradas 4.798 anulações.

Muitas vezes, um texto é considerado ofensivo aos direitos humanos por fazer uso da "Lei de Talião". Um exemplo de texto que zerou na redação do Enem por esse motivo é este:

“A continuidade de práticas de práticas violentas contra a mulher é favorecida pelo que é definido como violência simbólica. Nesse tipo de violência, a sociedade passa a aceitar como natural as imposições de um segmento social hegemônico, neste caso, o gênero masculino, causando a legitimação da violação de direitos e/ou da desigualdade. Nesse contexto, deve-se adotar a prática de “olho por olho, dente por dente” para que a violência contra a mulher não fique impune. O agressor deve sofrer a mesma agressão que cometeu.”

Escrever que a pena do criminoso deve ser idêntica ao crime que cometeu é um desrespeito aos direitos humanos, segundo as regras do Enem.

Respeito para além da prova

Quando questionada sobre como ajudar o aluno a respeitar os direitos humanos e aplicar esse olhar sobre a prova, a professora do Ensino Médio Jaqueline Monteiro afirma: “Deve haver uma parceria entre a família e a escola”.

Segundo ela, a responsabilidade de ensinar o aluno a respeitar o outro é parte do “papel da criação familiar e cultural”.

Para ajudar nisso, Monteiro procura elaborar aulas exclusivas sobre direitos humanos, demonstrando aos estudantes que o respeito ao outro integra a Constituição e que devem ser seguidos na vida, não apenas na redação do Enem.

A professora também aconselha aos alunos buscarem referências de tolerância com as diferenças em redações nota mil e em plataformas atuais, como em novelas, filmes e artigos jornalísticos.

“Procuro mostrar novelas, filmes, artigos que quebrem tabus sociais e propostas de intervenção de alunos que tiraram nota máxima, esse é o melhor parâmetro para mim. Isso só tem a somar na coletânea do estudante para desenvolver uma boa redação sem agredir ninguém. Eles conseguem sugerir soluções humanas e concretas”, diz.

Sobre a agressão a esses direitos fundamentais no texto, Monteiro alerta: “Ao contrariar os direitos humanos você incita a violência. O aluno até pode ter sua opinião, mas redação do Enem não é local para desabafo”.