Aluno nota mil no Enem abandona duas faculdades por falta de acessibilidade
“Bernardo é um herói, mas não um super-herói.” A frase carregada de orgulho é de Carmen Pereira, mãe do carioca de 20 anos Bernardo Piñón de Manfredi, nota mil na redação do Enem de 2016.
A história do rapaz, de fato, parece saída de um filme. Quando nasceu, em 1997, Bernardo foi contaminado com uma bactéria na maternidade. Ficou surdo dos dois ouvidos e com espasmos nas mãos e nos braços. Nada que o impedisse de ser aprovado em 2º lugar no curso de Filosofia na PUC-Rio e em 1º lugar em História na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
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Bernardo superou limites motores e auditivos para, mesmo estudando em escola pública, ser um dos 77 brasileiros a atingir a nota máxima do Enem. Mesmo assim, o garoto precisou abandonar os cursos e prestar a prova novamente neste ano porque nem a PUC nem a UFRJ dispunham de ferramentas para ajudar um aluno surdo no ritmo do ensino superior.
Bernardo se surpreendeu ao tomar o caderno de provas do Enem e se deparar com o tema deste ano: a formação dos surdos. “Foi como um desabafo para ele, que escreveu sobre sentir-se excluído do ambiente escolar”, contou Carmen ao UOL. “Ele vai guardar esse tema como um documento.”
Apenas uma nova prova de superação. Bernardo, que aprendeu a falar e a ler lábios, só não domina a Libras, a linguagem de sinais. Ele também aprendeu a escrever apesar da dificuldade provocada pelos espasmos nos membros superiores.
“Embora eu insistisse, os médicos demoraram a acreditar que ele não podia ouvir”, diz Carmem. “O médico pediu desculpas por só conseguir diagnosticá-lo aos 4 anos.” Para superar os desafios escolares, Bernardo contou com ajuda pessoal de Carmen, que acompanhava o filho em sala de aula repetindo para o garoto aquilo que ele não conseguia acompanhar lendo lábios.
Depois de finalmente se formar e atingir a nota máxima na redação do Enem, o jovem realizou o sonho e se matriculou na PUC-Rio no começo do ano. A instituição chegou a oferecer um intérprete de Libras. “Ele vai falar Libras, mas agora ele precisa de leitura labial. Se ele for tratado apenas com libras, ele pode perder a fala”, diz a mãe.
Em razão da dificuldade em escrever com lápis ou caneta, o aluno também precisou de um transcritor durante as provas, mas a universidade não dispunha de um. “Ele tirou 10, 9 e 8 nas primeiras provas, mas depois ficou difícil manter o mesmo resultado.”
Assim, a PUC passou a alertá-lo sobre as notas baixas. O jovem pensou em cancelar a matrícula, mas a assistente social recomentou que só trancasse a vaga.
No meio do ano, Bernardo usou a mesma nota do Enem para se inscrever no Sistema de Seleção Unificada (Sisu) e tentar uma vaga na UFRJ. Acabou aprovado em História em primeiro lugar. Lá, as dificuldades foram ainda maiores.
Carmen decidiu acompanhar o filho no primeiro dia de aula, como fazia no Ensino Fundamental, e realizar a tradução simultânea. Ela se sentou de costas para o professor e de frente para o filho enquanto repetia o que era ensinado. “Horário integral, sete matérias, quatro horas cada. Ele aceitou, mas não era uma situação ideal, acabou atrapalhando.”
Ao UOL, Bernardo diz que não basta que as escolas sejam obrigadas a aceitar alunos com necessidades especiais. “Precisa mudar o padrão pedagógico e estimular a formação de profissionais especializados. E é necessário mais contato com as pessoas que têm deficiência.”
Carmen enumera o que a universidade precisa oferecer a um aluno como Bernardo: Primeiro, um aparelho auditivo potente. “Digital e acionado pelo professor. Ele funciona na sala de aula porque reduz os barulhos ao redor. Ele conseguiria ouvir 80% das coisas.”
Um tradutor labial. “Para que ajude o aluno quando ele não puder ver o que o professor fala”. E transcritor. “Alguém precisa transcrever durante a aula. Mas também poderiam autorizar o uso de um laptop”. Com ele, o jovem pode anotar e escrever com mais facilidade.
“Ele tentou de tudo. Tentou sozinho, como no ensino médio. Tentou muito… Eu não quero criticar as universidades; é o sistema. Mas ele ficou decepcionado. Quando ele vê um amigo comentando prova, ele fica muito triste porque ele quer, ele pode, mas não consegue. Ele precisa de ajuda sim. Bernardo é um herói, mas não um super-herói.”
Procuradas, as universidades não responderam até o fechamento da reportagem.
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