Escola com fama de violenta retira grades: 'Precisa acreditar no jovem'
Uma mudança sutil, mas consistente está acontecendo numa escola pública de São Paulo, localizada em região de periferia com histórico de pobreza e violência: a retirada gradual de portões e grades de ferro de suas instalações, um tema tabu.
Esse movimento se iniciou no começo deste ano com a mudança no comando da escola e a chegada do novo diretor, um professor de história de 34 anos beneficiado pela política de cotas raciais instituída por lei em 2013, na gestão do então prefeito Fernando Haddad (PT), que destina no mínimo 20% das vagas na administração municipal para negros, negras ou afrodescendentes.
Olhando do lado de fora, parece que continua tudo igual: grades e telas de ferro recobrem ostensivamente grande parte da fachada, escondem janelas, galgam muros. Olhando de dentro, entretanto, já se pode notar que algo mudou: a grade que estava aqui e ali e desapareceu.
Quem vive o dia a dia do ensino daquele lugar, como Camile, aluna do 4º ano A do período matutino, sabe de cor onde foi que mudou e vai apontando local por local, embora quem chegue de fora possa se assombrar com a estrutura de segurança ainda presente, que parece excessiva e faz lembrar uma unidade prisional.
Completando 50 anos em 2017, a EMEF (Escola Municipal de Ensino Fundamental) Brasil-Japão, região do Rio Pequeno, periferia da zona oeste da capital paulista, hoje com 896 alunos em seus três períodos (90% deles afrodescendentes), adquiriu um estigma ao longo dos anos: de lugar violento, com pouca capacidade de formar bem um cidadão.
Um estigma que quem trabalha ali rechaça e julga injusto, mas ainda machuca por meio de antigos epítetos maldosos que a memória não esquece: "Escola Brasil-Japão: entra burro, sai ladrão"; "Escola Brasil-Japão: a Fundação Casa do Rio Pequeno".
A retirada pouco a pouco de algumas grades e portões internos compõe a estratégia de combate a esse estigma, do qual faz parte também a incorporação de outros cuidados e benfeitorias, como a colocação de toalhas coloridas sobre as mesas do refeitório. Diziam que elas não resistiriam nem por uma semana, logo furtadas ou destruídas, mas elas continuam lá, expostas e intactas, já faz muito mais.
É uma população majoritariamente pobre e exposta à violência a que vive no entorno e estuda na escola.
Segundo o Mapa da Desigualdade 2017, da Rede Nossa São Paulo, no distrito do Rio Pequeno a taxa de mortes por homicídio na faixa etária de 15 a 29 anos, por grupo de 100 mil habitantes da mesma idade, é de 38,13. Coloca o distrito na 59ª posição dos mais violentos para os jovens, entre os 96 distritos de São Paulo.
Com relação à moradia, conforme o estudo, o Rio Pequeno é dos piores da cidade, com quase um quarto dos domicílios (22,8%) situado em favelas (87ª posição).
"Precisa conscientizar a comunidade primeiro"
No limiar do portão de ferro da entrada da Brasil-Japão, na abertura de mais uma manhã de aulas, mães e pais e avós chegam trazendo seus meninos e meninas pela mão. Quem os recebe diariamente é Ubirajara França, 37, assistente técnico de educação que cuida do fluxo de entrada e saída dos alunos. É o profissional da linha de frente da escola, na interface com a comunidade.
Tio Bira, como é chamado, de boné na cabeça, há nove anos trabalhando ali, é um dos que veem com cuidado o processo de abertura. "Quando cheguei aqui, também estranhei o fato de ter grades tão altas", recorda. "Mas a escola fica do lado de uma praça periférica, onde o pessoal consome drogas, fica ali. É preciso primeiro um trabalho de conscientização com a comunidade, ela precisa ver que a escola é dela e cuidar. Tem todo um problema que vai além das grades", aponta.
Sentados na bancada de concreto já dentro da escola, aguardando o sinal para o início das atividades, Camile, 10, Fellipe, 9, Ryan, 10, Ryana, 9, Pedro, 9, Luciana, 10, Kelly, 10, todos alunos do 4º ano, discutem a presença das grades e o problema da segurança local.
"A gente se sente meio segura e meio presa com as grades"; "não é tão seguro assim, é só pular o muro, o telhado, e pronto!"; "garante a segurança, mas a gente fica meio isolada"; "com as grades não tem muito lugar para a gente circular", descrevem.
E sugerem, como solução que lhes parece definitiva, o aumento do policiamento dentro e fora da escola. "Tem que ter um policial lá dentro do pátio mesmo", pede Ryan. Contam casos de pequenos delitos que presenciaram ou tomaram ciência, como furtos de materiais das professoras e vandalismo dos mais velhos, que destroem os trabalhos feitos por eles, os pequenos, quando expostos pelas paredes.
Avó de uma aluna que acabou de deixar ali e ela mesma aluna do EJA (Educação de Jovens e Adultos) da escola, no período noturno, Valdelice Bispo de Castro, 59, não quer que as grades que protegem a escola por fora saiam de jeito nenhum: "E se alguém salta o muro e pega os meninos como reféns?". A mãe Luiza Holanda de Souza Valentim concorda: "Eu me sinto mais segura assim. Acho que é mais uma segurança para as crianças".
Valdelice e Luiza, que moram nas cercanias, junto da comunidade do Sapé, de onde vem a maioria dos alunos da Brasil-Japão, defendem um envolvimento direto com os moradores. "Quem entra na cabeça dessas pessoas para fazer a mudança? Tem que trabalhar na conscientização do ser humano para ele ser humano. Ainda outro dia, por exemplo, pintaram a escola, mas já picharam outra vez", reclama Valdelice.
"A gente se apropriou da escola. Peguei amor"
Na sala de aula do 4º ano, a professora Sheila Brito, 38, há três anos na Brasil-Japão, vê progressos no ensino local após ações por uma cultura de paz, mas acredita que a retirada de grades deva ser "um processo bem lento". "Há muita indisciplina aqui, infelizmente. Não adianta tirar as grades agora. É preciso primeiro muito diálogo com a comunidade em geral, pais, alunos."
Para Sheila, o trabalho dos educadores em geral não é valorizado e o problema externo vem terminar ali dentro, na forma de todo tipo de conflitos entre os alunos. Ela critica a falta de participação dos pais no dia a dia escolar, mas a vontade inicial de logo deixar a Brasil-Japão diz ter passado.
"Aqui se montou uma equipe fortalecida, que está ficando. A gente se apropriou da escola. Peguei um amor pela escola e pelos alunos também."
Veterana da Brasil-Japão, com a qual mantém relação mais de amor que de ódio desde 1982, Izabel Cristina Campos Portela, hoje professora readaptada, celebra a fase inaugurada com a retirada de algumas grades. "Ficou uma coisa menos pesada e pavorosa, mais aberta e arejada. As grades dão um aspecto ruim. Precisa ter um espaço ao qual as pessoas sintam alegria de vir. E a maioria dos alunos gosta de vir."
Izabel foi readaptada em outra função fora de sala de aula depois de agressões verbais e físicas que conta ter sofrido de alunos e que culminaram com seu afastamento por motivo de saúde.
Ela toma antidepressivos e não esconde as lágrimas quando começa a contar a sua história. Daí a vontade que não esconde de se aposentar, o que deve acontecer já no próximo ano. "Mas essa escola é a escola do meu coração", resume sobre seus 35 anos de serviços prestados.
"O que protege são as relações, não a grade"
A coordenadora pedagógica Dorotéa Bittencourt Dias, 47, em sua segunda passagem pela Brasil-Japão, é defensora do movimento por uma escola sem grades. "A grade não protege ninguém, o que protege são as relações com os alunos, com a comunidade. Isso, sim, protege."
Para ela, a mudança ensaiada não é um processo garantido, retilíneo, em que problemas não possam aparecer, mas "uma luta de todo dia, porque a escola é um organismo muito vivo". Dorotéa diz que havia grade onde devia e não devia. "Tinha até na cozinha. Parecia uma cadeia. Um dia alguém achou que era perigoso invadir a cozinha e colocou a grade. Mas a resposta nunca pode ser a grade."
Para a educadora, que traja uma camiseta negra com a figura de Dom Quixote estampada, o vento precisa continuar a movimentar os moinhos, com esperança no ser humano. "Tem que fazer isso [a escola] pulsar. Meu sonho é não ter mais grade nenhuma."
Na sala de porta aberta, o principal incentivador da mudança, o diretor Rafael Ferreira Silva, 34, explica que se fez um mapeamento prévio das grades a fim de identificar aquelas que deviam seguir e as que não tinham sentido em continuar e apenas "agrediam simbolicamente".
Entre as dispensáveis, as que impediam os alunos de entrarem e saírem livremente dos banheiros masculino e feminino, sendo sempre preciso chamar alguém dono das chaves na hora de usá-los.
Há relatos de alunos que estavam apertados e acabaram fazendo nas calças, mesmo, enquanto esperavam pela abertura da grade. Um constrangimento.
Do lado de quem não queria deixar os banheiros abertos havia o argumento de que as instalações pudessem ser invadidas, no caso, os meninos ocupando o banheiro das meninas.
"Não se resolve um problema criando outro"
Rafael, entretanto, assim ponderou: se isso acontecesse, então seria necessário combater o problema real, que é o assédio sexual, educando os alunos e, conforme o caso, aplicando sanções disciplinares.
"Não seria simplesmente colocando grades que eu resolveria. Não se resolve um problema criando outro. Se for dessa forma, criaremos armadilhas novas e éticas das quais não conseguiremos nos livrar depois", alerta.
As meninas do 4º ano que conduzem a reportagem pelas instalações estão felizes com a mudança. Mostram as portas dos banheiros abertas e os espelhos recentemente colocados e que usam sempre que precisam se arrumar, como farão no dia seguinte, na festa de encerramento de mais um ano letivo na escola.
Após um ano que avalia positivamente, citando como ganho importante também a eleição realizada para representantes de turma, Rafael já tem objetivos claros para levar adiante, atrás do sonho de uma escola mais livre e humana, mais justa, melhor, no ano que vem: o desenvolvimento de um grêmio estudantil ativo, a convocação regular de assembleias escolares para decisões coletivas e a formação de um conselho efetivo de pais.
"É muito mais fácil estabelecer uma relação autoritária, mas vai tolher a possibilidade de o aluno falar e crescer com autonomia", avalia. "Mesmo que o processo seja doído, a gente precisa acreditar no protagonismo juvenil", confia e projeta, enquanto nos acompanha cortês até o portão de saída da escola, onde, pela primeira vez em 50 anos, uma muda de cerejeira (árvore símbolo do Japão cujo traço se encontrava ali apenas no nome e da capacidade de regeneração) foi plantada e se arrisca a viver.
"É preciso dialogar e não criminalizar alunos"
Gabriel Corrêa, gerente de políticas educacionais do movimento Todos pela Educação, ONG que trabalha em projetos por educação básica de qualidade, vê como positivo o movimento feito pela equipe que coordena e dirige a EMEF Brasil-Japão.
"A violência intraescolar, dentro da escola, não é mesmo com grade ou cadeado que se resolve. É com muito diálogo, com o envolvimento dos pais, com mediação e não penalização dos conflitos."
Para Corrêa, não se justifica o processo de "judicialização da educação" ou a criação de um ambiente similar ao de uma prisão. Entretanto, pondera que a escola está inserida numa comunidade, não está isolada no mundo, e no caso de haver entorno violento pode ser necessária a adoção de medidas protetivas dos alunos e do patrimônio.
Ainda assim, não abre mão da qualidade com vistas à boa aprendizagem: "As boas escolas, as que funcionam, são as que têm ambiente propício. Os alunos precisam gostar da escola, quando estão ali".
Corrêa defende autonomia com responsabilidade para os alunos, pois não vê avanços do protagonismo dos jovens "simplesmente privando-os".
O especialista também frisa a importância de um professor bem formado e com boas condições de trabalho para a criação e manutenção de um ambiente escolar saudável.
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