Estudo aponta que bullying diminui, mas se mantém até o ensino superior
Bons alunos, aqueles que se saem bem nas disciplinas, tendem a não se envolver com o bullying. Por outro lado, as principais vítimas dessa prática são os maus alunos que também têm desempenho ruim em atividades físicas e sociais. Se for bem somente nestas atividades extraclasse, são grandes as chances de esse aluno praticar o bullying. Já na universidade as agressões deixam de ter relação com o desempenho escolar e tendem a diminuir.
As informações fazem parte de uma pesquisa de José Leon Crochik, 61, professor do departamento de psicologia da aprendizagem, do desenvolvimento e da personalidade do IPUSP (Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo). Cofundador do Laboratório de Estudos sobre o Preconceito da USP, do qual é coordenador, nos últimos anos ele voltou o foco para o estudo do bullying nas instituições de ensino.
A pesquisa financiada pelo CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) deu origem ao livro “Bullying, Preconceito e Desempenho Escolar: Uma Nova Perspectiva” (Benjamin Editorial, 2017). Inicialmente voltado ao ensino fundamental 2 e ensino médio, o estudo continua em andamento e será concluído em fevereiro de 2019. Nesta nova etapa, avalia o bullying em universidades públicas --até agora, foram 731 participantes na cidade de São Paulo.
Confira a seguir os principais trechos da entrevista, em que o professor fala sobre a prática, as principais descobertas da pesquisa e a mudança no ambiente escolar que pode ter facilitado a vida dos nerds.
Qual a relação entre preconceito e bullying?
O preconceito tem um alvo específico, enquanto no bullying o alvo pode ser o mesmo do preconceito ou não. O bullying refere-se a várias formas de agressão dirigidas, durante um certo período, contra alguém que não consegue resistir suficientemente a essas ações. Pode até tentar, mas não consegue. Existe, portanto, um desequilíbrio de poder. E acontece geralmente no mesmo nível hierárquico, como entre alunos.
O preconceito tem como alvo um grupo específico e está ligado a movimentos sociais: racismo, antissemitismo, LGBTfobia. As pessoas preconceituosas reconhecem em seus alvos algo que não podem reconhecer em si próprias: como todos, tendem a reprimir os desejos que têm, por não poder aceitá-los. Então tem de agredir esses alvos para fortalecer nelas mesmas a repressão dessa vontade que têm.
Os alvos nunca devem ser responsabilizados pela violência que recai sobre eles, pois os preconceitos são o contrário da experiência: o que é imaginado do alvo não se relaciona essencialmente com ele
O que mais o surpreendeu na sua pesquisa sobre bullying no ambiente escolar?
A pesquisa baseia-se em duas hierarquias em sala de aula descritas pelo filósofo alemão Theodor Adorno [1903-1969]. A oficial refere-se ao melhor desempenho escolar, enquanto a não oficial trata de melhor desempenho em esportes coletivos, namoros e popularidade [habilidades físicas e sociais].
O que mais nos surpreendeu foi que, no ensino fundamental, os melhores alunos nas disciplinas escolares tendem a não ser os agressores nem os alvos de bullying. Isso é interessante, porque julgávamos que eles seriam os alvos.
Já os piores em sala de aula se dividem em dois grupos. Quando se destacam positivamente na hierarquia não oficial [mal em sala, mas bem na educação física, por exemplo], tendem a ser os autores das agressões. Se também são os piores na hierarquia não oficial, geralmente viram o alvo das agressões.
Além disso, entre o ensino fundamental e o ensino médio há continuidade entre o papel ocupado no bullying: os que são autores e apoiadores em um nível de ensino tendem a continuar a ser no outro. O mesmo pode ser dito de quem observa e sofre o bullying. Já no ensino superior, os alunos que participam do bullying [presentes em menor quantidade] tendem a fazê-lo em todos os papéis.
Pensando em estereótipos, esses que não se envolvem no bullying escolar seriam os nerds?
Sim, são os melhores alunos da sala, chamados de nerds. Antes eles eram hostilizados, hoje não são mais. Considero esta como sendo uma mudança histórica importante.
A gente vê essa valorização até em eventos como a Comic Con Experience [evento realizado em São Paulo]. Por que isso aconteceu?
O fato de um aluno ir bem na escola se relaciona hoje com uma boa adaptação, uma possibilidade de ele se dar bem na vida. Na época em que [Theodor] Adorno escreveu sobre as hierarquias, o bom aluno tinha a imagem do intelectual, aquele que pensava muito. Houve uma pressão muito grande para as escolas se voltarem a aplicações imediatas, então hoje eles têm uma inteligência prática.
As pessoas mais ricas do mundo, como Bill Gates [cofundador da Microsoft], usam sua inteligência para ficar muito ricas e isso está sendo valorizado. Dados socioeconômicos confirmam que, se você tem mais escolaridade, consegue mais renda
Ser um bom aluno também passou a ser mais valorizado pela cultura. Adorno, em referência ao nazismo, dizia que a segunda hierarquia, aquela não oficial, que envolve força, era voltada contra a primeira, que é a intelectual. Portando havia uma certa ambiguidade em relação ao professor: de um lado era respeitado porque sabia muito, de outro poderia ser derrubado com um tapa. Parece que essa ambiguidade diminuiu e acho que isso faz com que [os nerds] sejam deixados em paz.
Os bons alunos tendem a não se envolver com o bullying. Por outro lado, o problema acontece em outra região, aquela que costumamos chamar de “fundão”. Isso pode significar um certo abandono em relação àqueles que não são considerados bons alunos e é preciso fazer algo para reverter a situação. Talvez, se pudessem ser mais incluídos em sala de aula, pudessem aprender mais, eles não seriam autores de práticas de agressão.
Sua pesquisa também aborda o bullying nas universidades. Isso de certa forma surpreende, porque estamos falando de jovens adultos. É comum essa surpresa?
Nas nossas pesquisas anteriores, como entrevistávamos todos os alunos da classe, havia a autoindicação e a indicação dos colegas [eles apontavam quem mais achavam que praticava e sofria bullying]. Nessa fase do ensino superior, temos só a autoindicação [os alunos respondem sobre sua vida escolar em diferentes fases]. Notamos que quem tendia a ser o autor da agressão no ensino fundamental continua a ser no ensino médio e no superior. Há um histórico.
Mas as formas de agressão diminuem bastante, apesar de ainda existirem. É uma redução de cerca de 40% nesse tipo de ocorrência, que envolve xingamentos, ameaças, boatos, apelidos, ciberbullying e carícias sem permissão. Cerca de 10% dos alunos praticam ou sofrem bullying no ensino superior, contra mais de 20% no ensino médio.
Uma das explicações para essa redução é que os bons alunos entram na universidade --ainda mais no Brasil onde apenas cerca de 20% deles chegam ao ensino superior. E os bons alunos, como vimos na pesquisa anterior, não são muito afeitos ao bullying. Uma vez uma aluna de mestrado em física me falou que, se aplicássemos a pesquisa na sala dela, só encontraríamos nerds.
Se todos forem nerds, vai haver outro tipo de bullying, porque as pessoas sempre dão um jeito, não?
Claro, não há dúvidas de que a violência acaba ocorrendo de alguma maneira. E não é só o bullying: no mundo adulto ele se transforma em assédio dos mais variados tipos. E a definição de assédio e de bullying é quase a mesma coisa. A gente encontra em todo lugar: na sala de aula, na profissão, na rua...
Muita gente fala que é mera brincadeira, que, quando vira adulto, desaparece. Não desaparece, ele se transforma em outra coisa
Antes, os alunos saíam da escola e essas agressões só continuariam no dia seguinte. Hoje, com o ambiente virtual, é o tempo todo. Quanto a internet potencializa o bullying?
Potencializa muito, ao infinito. Antes o alvo de ridicularização podia mudar de escola, mas sempre havia o receio de que alguém o reconheceria, diria aos novos colegas quem ele era. Isso marca, não é uma mera brincadeira: tanto para quem sofre como para quem pratica. E o ciberbullying potencializa isso que já existia, pois em qualquer lugar ele pode reaparecer.
Você pode tentar tirar [a informação] de um lugar, mas não sabe se ela escapou por outro. Não tem controle e é para sempre. Em contrapartida, é uma mídia muito rápida e logo outra coisa vai substituir.
A internet potencializa o bullying ao infinito
Infelizmente, serão novas vítimas.
Infelizmente, não há dúvida. E a definição do bullying, que é esse desejo de destruir e submeter o outro a sua vontade, está presente em diversas formas de crueldade e de agressão, como é o caso do estupro.
Esse tipo de violência subjacente ao bullying é muito forte e está presente naquilo que parece ser mais arcaico e primitivo na nossa sociedade. Que é essa vontade de querer destruir o outro, tirar a vontade dele, a liberdade, fazer o que bem entender e transformá-lo em objeto.
O que leva alguém a praticar o bullying?
O que importa no bullying é ter alguém que esteja, digamos, à disposição dos desejos de destruição do autor da agressão. Alguém que não vai reagir e, se reagir, pode suscitar ainda mais agressão. É esperado que a criança não tenha controle sobre suas ações. Mas é preocupante o mesmo acontecer com adultos, que nesses casos são indivíduos infantis, regredidos.
Isso surge por meio de uma cultura, ligada à nossa sociedade, que não tem referências adequadas e claras para as pessoas se inspirarem. No Brasil, hoje, estão diminuindo as referências de pessoas associadas à Justiça, à política, à medicina etc. Pessoas que sejam modelos na sua relação com o que fazem: de olhar e pensar que, se aquela pessoa se apaixonou por algo, esse algo vale a pena e pode ser um caminho a seguir. É o que acontece na sala de aula, quando um professor apaixonado e envolvido transmite importância para o assunto que ensina.
Sem referências desse tipo, a relação que temos com diversas atividades e valores passa a ser externa. Não nos apropriamos dela. Sem ter para onde voltar nosso interesse, ele se volta a nós mesmos. E no lugar de uma pulsão, que é o interesse por um objeto, temos uma compulsão, que é a pulsão sem um objeto específico. Quem tem compulsão por comer nunca estará satisfeito, porque a questão não é a comida, mas sim o ato de comer. O mesmo com jogo: não importa se ganha ou perde, o importante é jogar. O objeto da atividade é substituído pela própria atividade, que passa a não ter fim.
O mesmo com aquele que pratica o bullying: ele não aguenta, tem que estar zoando sempre, humilhando e agredindo seu alvo até destruí-lo. E é preciso cuidado quando estamos falando de alunos, porque estão em formação, são crianças, adolescentes. Eles devem ter a responsabilidade de entender que sua agressão, mesmo que não a julguem como tal, pode machucar os outros. Não significa que tudo deve ser perdoado --toda agressão deve ser refletida e inibida--, mas esse olhar do educador para todos é fundamental.
Como mudar isso?
O primeiro movimento é pensar no que está levando a tanta violência. Assim como fatores individuais e a família afetam, a cultura suscita e fomenta a violência. Vivemos em uma sociedade em que nos sentimos ameaçados: para poder sobreviver, temos de estar sempre atentos. E sempre o outro, por mais cordial que seja nossa relação, pode ser percebido como um adversário. Essa sociedade que nos leva a colocar um contra o outro precisa ser repensada.
Precisamos entender que a violência existe, o que nos leva a agir dessa forma e tentar resistir. Se eu compreender que estou sendo violento, posso tentar entender o que me faz ser assim e parar. Isso não muda a fonte que gera a violência, mas me faz ser menos violento com o outro.
É preciso pensar na violência no dia a dia. Essa compreensão é importante, porque não vai ter a lei do talião [olho por olho, dente por dente]: o fato de o outro ser violento não justifica eu ser violento com ele
E como minimizar o bullying no ambiente escolar? Ele pode ser controlado?
Vou dar dois exemplos da pesquisa que ilustram bem isso. Além dos alunos, entrevistamos gestores educacionais, diretores, coordenadores. Os educadores que tinham uma visão mais ampla da violência subjacente ao bullying tinham também ações mais direcionadas ao combate.
Em uma das escolas, o diretor tinha uma boa percepção do tema e os alunos fizeram pesquisas, entrevistaram os colegas, fizeram apresentações. Não é uma discussão finalizada, mas puderam pensar a questão em um sentido mais amplo, o que me parece interessante. Havia essa consciência de que não dá para individualizar o fenômeno, os agressores e os alvos. A iniciativa não só evita o bullying que já existe como também previne, se as pessoas refletirem e compreenderem nelas mesmas o que leva a essas ações.
Já outra gestão entendia o bullying como uma questão individual e momentânea. Havia um aluno homossexual que mantinha relação sexual consentida com os mais velhos. Até que ele desistiu, mas sua postura não foi aceita. Os outros alunos preparam uma armadilha no banheiro e o estupraram. A escola era grande, ficaram todos sabendo. A diretora então chamou a vítima e os estupradores, que também eram alunos, fez todos darem as mãos e continuou tudo como se nada tivesse acontecido.
São exemplos extremos, mas reais, sobre a importância da compreensão do gestor em relação à violência. Quando um gestor propõe uma discussão, as crianças podem pensar em si mesmas e por que querem agredir os outros.
Há muitos grupos lutando por mudanças, mas também muita resistência. Esses movimentos podem mudar a sociedade, minimizando, por exemplo, o preconceito?
Temos vários elementos, de várias áreas, que mostram uma certa regressão. Na área trabalhista, a reforma tornou as coisas mais injustas. A educação deixa de ser laica quando você diz que a religião pode ser ensinada no ensino público. Vejo regressão na volta de leitos psiquiátricos, em relação à compreensão do sofrimento psíquico. Por outro lado, tudo isso está sendo apontado, discutido.
Se há reação é porque houve progresso. E isso me parece irreversível
A impressão que tenho é que, por haver avanço de um lado, aqueles que querem conservar o poder tentam se fortalecer. E isso está aí. O movimento LGBT, por exemplo, tem se fortalecido: tem casamento, eles estão mais presentes nas ruas e isso é muito bom. Mas, claro, suscita raiva e ódio naqueles que estão contra essas pessoas. Porque houve esse avanço tem também a reação.
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