Com risco de chegar às escolas, negação da história preocupa especialistas
Não houve ditadura no Brasil, o Holocausto não aconteceu, os negros não foram escravizados. O chamado negacionismo histórico ganhou força nos últimos meses, impulsionado pelas redes sociais e por declarações de políticos. O tema, que era pouco estudado, agora preocupa especialistas pelo risco iminente de chegar às escolas.
"Os livros didáticos podem ser diferentes, mas há um limite que não pode ser cruzado. Não pode haver negação do conhecimento", diz o professor titular de História do Brasil Independente da Universidade de São Paulo (USP), Marcos Napolitano. "A pessoa tem uma posição política diante do nazismo, do comunismo, isso é do cidadão, não cabe ao historiador dizer. O que não pode é construir essa posição às custas da verdade histórica."
Ele e a colega Mary Junqueira vão coordenar um debate sobre o assunto na USP entre 7 e 9 de maio. Um dos objetivos é incluir o tema na formação dos novos professores de história, que precisam aprender a se munir de evidências diante das negações. Além disso, Napolitano acredita que uma forma de combater o negacionismo é os historiadores se comunicarem mais com a sociedade. "A gente não é formado para fazer um bom programa de YouTube, um texto rápido e eficaz, e sim para escrever textos longos, complicados e chatos."
O negacionismo histórico já existia ou surgiu agora?
É um termo que já existe há algum tempo e se refere à historiografia do Holocausto. Os negacionistas são aqueles que negam o Holocausto como uma política sistemática de extermínio dos judeus. Na campanha presidencial, surgiram negacionismos mais ligados à história do Brasil: não houve genocídio indígena, os portugueses nunca estiveram na África para fazer tráfico de escravos, não houve ditadura, não houve tortura. É a negação de um evento em que há evidências fortes, testemunhais, materiais, documentais. Eles dizem que não foi bem assim, não foi o objetivo da política, foi um acidente. Esse tipo de postura não tem respeitabilidade no meio historiográfico brasileiro ou internacional. Mas é um fato social.
E por que ele está surgindo hoje no Brasil?
Há um segmento ideológico da sociedade que reclama uma outra história do País, que acha que a historiografia do Brasil nos últimos anos deu ênfase à chamada vítima da história, as classes populares. A extrema direita não se reconhece na produção.
Mas essa crítica é verdadeira?
Não. Isso foi uma tendência dos anos 80, mas já nos anos 90 estava bastante equilibrado. É um visão preconceituosa e errônea. Aquela ideia que aparece nas redes sociais, de que toda a historiografia é de esquerda. Hoje se estuda muito as elites, o conceito de Estado, o autoritarismo, a democracia. A historiografia brasileira tem um leque amplo, com liberais, conservadores, historiadores de esquerda que não são marxistas. Agora, todo historiador sério segue regras. Não pode achar que não existiu porque ele não gosta daquilo ou a ideologia com a qual ele se identifica não aprova.
É possível revisar a história com novas pesquisas?
Sim, é o revisionismo clássico, um processo interessante e feito com todo o respeito às regras metodológicas da área. Quando aparece uma nova fonte, uma nova demanda da sociedade, os historiadores revisam o passado. Outra coisa é o revisionismo ideológico, quando parte de um ponto, de uma polêmica ideológica com relação ao passado, e a partir disso vai buscar a revisão.
Houve revisionismo com relação à ditadura o Brasil?
Sim, e não necessariamente feito por pessoas de direita. Historiadores progressistas revisaram temas polêmicos que a própria memória de esquerda defendia, como a participação da sociedade no golpe. A memória da esquerda falava que o golpe tinha sido feito por meia dúzia de militares, alguns políticos e apoio americano. E a sociedade tinha sido vítima. Isso não corresponde à realidade histórica e, nos últimos anos, esse tema apareceu.
O negacionismo pode levar ao revisionismo?
Esse é o ponto. Muitas vezes o negacionismo puro e simples pode alimentar o revisionismo ideológico, o que pode comprometer o conhecimento.
Ele pode chegar às escolas?
Já está chegando, professores do ensino básico já ouviram de alunos que esse negócio de ditadura não existiu, que é uma invenção da esquerda. Um dos objetivos do nosso evento é discutir como os alunos de História, os pós-graduandos e os professores devem lidar com isso. Como esse tema deve ser parte formativa daqui para a frente para os professores.
Mas o que o senhor diria a um aluno seu, que será professor de História?
O professor tem de ter muito claro o que é uma evidência irrefutável. Por exemplo, por que dizemos que houve tortura? Porque há testemunhas, documentos, provas, evidências. A ditadura? Por que tivemos um governo que caçou parlamentares, fechou o Congresso, governou à base de atos institucionais. Isso é uma evidencia de um regime autoritário, você pode não chamar de ditadura se não gostar. Mas não dá para chamar de democracia.
Os livros didáticos podem incorporar o negacionismo?
O livro tem uma ligação forte com a produção historiográfica. Algumas pesquisas novas às vezes demoram para chegar à escola. Mas se o MEC resolver interferir na avaliação dos livros, isso é uma forma de pressionar para que se incorpore negacionismos E não é só na História. Há o criacionismo, por exemplo. Como você vai dar estatuto de opinião científica para o criacionismo? Com todo respeito à religião, não há evidência. Esse tipo de coisa não pode chegar ao livro didático. Eles podem ser diferentes, mas há um limite que não pode ser cruzado. Não pode haver negação do conhecimento.
Qual o impacto de declarações negacionistas vindas do governo?
Isso interfere no trabalho historiográfico porque sinaliza para a sociedade, com toda a autoridade que o presidente tem, que aquela opinião é válida do ponto de vista histórico. A pessoa tem uma posição política diante do nazismo, do comunismo, isso é do cidadão, não cabe ao historiador dizer. O que não pode é construir essa posição política e ideológica às custas da verdade histórica.
Qual a maneira de combater o negacionismo?
Uma maneira é a universidade construir canais de conversa com a sociedade. É começar a pensar no que a gente tem chamado de história pública, como criar conexões, desde a produção audiovisual até uma matéria em um jornal. A produção historiográfica nos últimos 40 anos se voltou muito para o público interno das universidades. Um debate só entre pares. É hora de os historiadores começarem a ocupar esse espaço. A gente não é formado para fazer um bom programa de YouTube, um texto rápido e eficaz, somos treinados para escrever textos longos, complicados e chatos. Mas é um desafio que se coloca hoje.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.
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